O Estado de S.Paulo - 04/04/10
Abril será tão vermelho quanto promete o Movimento dos Sem-Terra (MST)? A promessa está no ar: a meta é superar as 29 invasões de terra ocorridas no ano passado. O que está por trás dessa recorrente agenda do caos, quando se sabe que o MST ajusta as ações às estratégias eleitorais de Lula? Foi assim em 2002 e em 2006, quando o MST, detectando reais condições de vitória de seu candidato, praticamente ficou inerte. Já em anos seguintes ao pleito ? 2004, com 103 invasões, e 2007, com 74 ? o movimento procurou recompor as bandeiras encarnadas pelo território, a sinalizar a adoção do modelo "sanfona", vaivém, e passando a ser visto como organização de interesses calibrados por patronos e circunstâncias. O que caiu sobre o telhado bem fornido do MST, que será um estorvo à campanha da candidata Dilma Rousseff, caso efetivamente venha a cumprir a ameaça de perturbar a segunda quinzena de abril com as previsíveis cenas de ocupação de propriedades e destruição de equipamentos e plantações?
É pouco crível o argumento de que os líderes pretendem sinalizar descontentamento com os rumos da reforma agrária na atual administração, quando se sabe que a estreita interlocução com autoridades permite concluir que os passos tomados por ambos os lados são devidamente combinados. Aliás, o ajuste se faz necessário até para evitar interrupção do fluxo de recursos que ingressam no movimento por vias transversas. Tampouco parece lógica a ideia de que o recrudescimento do programa de invasões sinalizaria reação à criminalização dos movimentos sociais, cujo aniquilamento estaria sendo planejado por uma "direita que se rearticula", segundo o comandante do MST, João Pedro Stédile.
Até onde a vista alcança, a virada de avesso no campo causará efeito contrário ao que se pretende. Conseguirá apenas expandir a repulsa social e a pressão para conter o ímpeto dos invasores. Descartando-se mais essa hipótese para o anunciado surto emessetista, sobra o viés eleitoreiro, cujo recado pode ser: "Ou vocês, candidatos, fazem a reforma agrária que queremos ou vamos botar pra quebrar." Se for essa a intenção, o ônus recairá sobre Dilma Rousseff.
É oportuno lembrar que a tentativa de estabelecer conexão entre a candidata de Lula e a parcela que defende a "revolução socialista" é de todo indesejável nesse momento. Vamos às razões. Como se sabe, Luiz Inácio substituiu o manto programático pelo figurino pragmático. Basta expor a radiografia do governo. A linguagem cifrada da velha esquerda, com seus surrados refrãos, é usada por ele com parcimônia. Os eixos econômicos da administração são firmemente pregados à roda do neoliberalismo, mesmo se concedendo considerável espaço ? bem maior no pós-crise ? ao papel do Estado nos rumos da economia. Fosse confinado ao dogmatismo da velha cartilha, Lula não lideraria ações confrontadas por movimentos sociais, como a questão dos transgênicos, a transposição do São Francisco, a construção de hidrelétricas, a produção de biocombustível, entre outros programas. Até os PACs (1 e 2), com seu decantado aglomerado de obras, deixam boquiabertos grupos ambientalistas. Emblema dessa disposição é o caso que Lula gosta de realçar: a "perereca" que quase barrou a construção de um túnel.
Luiz Inácio tem sabido jogar com os contrários. Para arrefecer a bateria crítica, não deixa por menos. Promove amplos ensaios de cooptação. Primeiro, incentiva a abertura de locução dos movimentos sociais. Que se sentem motivados a falar mal de certos projetos. Segundo, abre dutos para irrigação de ONGs com uma batelada de recursos. Terceiro, promove articulação junto a núcleos representativos da sociedade, engajando-os em mecanismos governamentais (Câmaras, grupos de trabalho, comitês, etc.). A seguir, Lula vai ao seu encontro, prestigiando eventos, falando a linguagem que as entidades desejam ouvir, repetindo mantras e colorindo palanques com a liturgia dos bonés. A regra é: morder e assoprar. Dessa forma, agrada a gregos e troianos. Não por acaso, o grevismo na área federal passa férias sob a montanha de um vulcão extinto. Uma ou outra greve atravessa ligeirinha os horizontes da administração, sem abalar os alicerces lulistas.
Para os adversários, contudo, os canhões grevistas são intensamente usados. Veja-se essa greve de professores em São Paulo, com claras intenções de bagunçar a despedida de José Serra do governo. Já as centrais sindicais gozam de permanente festa. Locupletadas de recursos ? provenientes de contribuições do sistema confederativo ?, as gigantescas estruturas deixam as ruas para permanecer nos gabinetes.
É interessante ver um palco repleto de atores malemolentes? Não. Daí a necessidade de povoar os espaços cênicos com perfis exóticos, gente espalhafatosa, contendores desabridos e até fomentadores de ruptura de convenções. Inserem-se, aqui, os grupos que agem para demolir as bases da lei e da ordem, a partir do MST. Essa organização tem sido contumaz desafiante do sistema normativo. Seu alvo é o agronegócio, que responde por um terço dos empregos do País e por um superávit de US$ 23 bilhões da balança comercial. O curto-circuito da ilegalidade provoca incêndio. E prejuízo de monta.
O governo lava as mãos, sinalizando que outra esfera, a Justiça, é quem pode entrar em ação. Preserva-se. Mas continua a receber apoio do movimento. Agora, o governo se encontra diante de uma sinuca de bico. O MST garante que vai abandonar o esconderijo em que se abriga em anos eleitorais. Promete mais uma algazarra no campo na segunda quinzena de abril, descosturando acordo tácito feito há tempos. A vermelhidão deste abril é a proposta cromática mais adequada para José Serra melhorar a plumagem azul e amarela de seu tucano.
Entrevista:O Estado inteligente
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