O Estado de S. Paulo - 16/04/2010
Comecemos pelo óbvio: preso é gente. E gente precisa de alimento, educação e trabalho. No Brasil, porém, a realidade às vezes consegue revogar até axiomas. Aqui, os presídios não são casas correcionais socializadoras, mas depósitos de seres humanos que, lá chegando, se transformam em coisas - pelo menos aos olhos apáticos da maioria - e como tal são amiúde tratados.
Essa constatação vem sendo escancarada diariamente ao País, desde que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pôs em execução o Programa dos Mutirões Carcerários.
As deficiências são de toda ordem: desde a já conhecida superpopulação, a exigir investimentos muito mais consistentes na estrutura carcerária, até o lixo acumulado e a infestação por ratos, cuja solução é de simplicidade absoluta. No âmbito do sistema de justiça, faltam técnicos e estrutura mínima de funcionamento em algumas varas de execuções penais. Enquanto escasseiam defensores, sobram processos aguardando instrução, num quadro em que o excesso de prazo passa a ser a regra.
De fato, os mutirões carcerários constataram um inadmissível déficit de mais de 167 mil vagas no sistema prisional - que hoje mantém mais de 473 mil pessoas e cresce em média 7,11% ao ano. Esse número é ainda mais grave se considerados os milhares de mandados de prisão que ainda não foram cumpridos. Sem dúvida, o total gasto pela União no ano passado para construção de presídios é insuficiente e não atinge sequer 3% dos recursos essenciais para a criação dessas vagas.
A ineficiência sistêmica é mais flagrante no paradoxo de que milhares de réus encontram-se soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se acham ilegalmente encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento da pena. E o mais aviltante: muitos presidiários cumprem, provisoriamente, penas que ultrapassam o teto legal fixado para o delito que cometeram.
É para reverter tais ignomínias que o CNJ trabalha.
Em um ano e meio de trabalho e após examinados mais de 111 mil processos, foram concedidos cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre os quais mais de 20,7 mil liberdades. Em outras palavras, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reouveram o vital direito à liberdade. Quanto à racionalização dos gastos - decisiva num sistema carcerário em que a superlotação é a regra -, os mutirões resultaram na realocação de vagas equivalentes à capacidade de 40 presídios médios. Não é pouco, mas há muito ainda por fazer.
A Lei de Execuções Penais determina que os condenados trabalhem ou tenham acesso ao ensino fundamental. Todavia, recente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro revela que, em 2008, a média de presos sem trabalho gira em torno de 76% e apenas 17,3% estudam. Também de acordo com a pesquisa, entre os detidos que trabalham, a probabilidade de reincidência cai a 48%. Para os que estudam, reduz-se a 39%.
Ora, o alto índice de reincidência demonstra que o sistema prisional não atende ao seu principal objetivo - recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que tiveram a desventura de infringir a lei.
Ainda que não resolvam, por si sós, a grave situação por que passa o sistema de justiça criminal, os mutirões descortinaram, jogando luz sobre o incômodo quadro, uma realidade que a população brasileira, em geral, e o Estado, em particular, preferiam ignorar, como se o problema não existisse ou não lhes fosse pertinente.
Os explosivos indicadores da violência urbana, o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança demonstram às escâncaras que o problema se agrava a olhos vistos e precisa ser resolvido com medidas pragmáticas e não paliativas, a exemplo das parcerias que o CNJ vem fazendo com órgãos públicos e com a comunidade para viabilizar a capacitação profissional necessária à reinserção dos presos na sociedade, além do acesso a serviços básicos como a previdência e assistência social.
No abrangente conjunto de ações desenvolvidas pelo CNJ para viabilizar a efetiva reinserção de egressos, destacam-se projetos como o Começar de Novo, a Advocacia Voluntária, o Recambiamento de Presos e até a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (Lei n.º 12.106/09), no âmbito do CNJ, verdadeiros legados estruturantes dos mutirões carcerários, com frutos até mesmo no plano da justiça criminal. Não por outro motivo, o 3.º Encontro Nacional do Judiciário, realizado no início do ano, elegeu o ano de 2010 o ano da justiça criminal.
De fato, os mutirões nos dão uma aula de Brasil, cujas revelações ensinam que apenas um esforço conjunto, sério e planejado pode virar essa página tão triste e calamitosa, tanto do ponto de vista dos direitos humanos como da segurança pública. Daí a elaboração de ampla Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, alicerçada em estreita colaboração entre os órgãos do Judiciário, do Executivo e do Ministério Público, direcionada à superação dos problemas que, além de empalidecerem a efetividade da lei, atrapalham o fortalecimento das instituições democráticas no País.
Pressuposto dessa integração de ações é o reconhecimento da extensão do problema e da própria responsabilidade de cada uma das instituições ligadas ao sistema carcerário. O momento é de abandonar a postura da transferência de culpas para abraçar a da corresponsabilidade, com planejamento e atuação articulados.
Por ação ou omissão, o tirano nessa história não pode ser mais o Estado brasileiro, cujo crescimento econômico, em plena crise mundial, tem despertado admiração nos quatro cantos do mundo. Passa da hora de o País alçar ao ranking exemplar da responsabilidade social, garantindo, minimamente, proteção aos direitos fundamentais, sobretudo dos segmentos mais vulneráveis da população.
É PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO CN
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2010
(1998)
-
▼
abril
(259)
- DORA KRAMER Em nome da História
- Os 'hermanos' se afagam EDITORIAL O Estado de S.Paulo
- MERVAL PEREIRA A busca do diálogo
- O MST sem aliados Alon Feuerwerker
- MÍRIAM LEITÃO As duas faces
- Belo Monte Rogério L. Furquim Werneck
- Anatomia de um fracasso Nelson Motta
- A nova cara dos britânicos Gilles Lapouge
- China só promete, não cumpre Alberto Tamer
- Coisas simples /Carlos Alberto Sardenberg
- Um tranco nos juros Celso Ming
- A política da eurozona:: Vinicius Torres Freire
- DORA KRAMER Ficha limpa na pressão
- MÍRIAM LEITÃO Última escalada
- LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS Bravatas de Lula e ...
- MERVAL PEREIRA Direitos humanos
- Lula celebra Geisel em Belo Monte DEMÉTRIO MAGNOLI
- Cavalo de Troia na Europa:: Vinicius Torres Freire
- MERVAL PEREIRA 'Irã é indefensável'
- JOSÉ NÊUMANNE Turma do sítio de dona Dilma bota pr...
- MÍRIAM LEITÃO Contágio grego
- Democracia reduzida Merval Pereira
- Novo ciclo Miriam Leitão
- Mercosul e integração regional Rubens Barbosa
- NICHOLAS D. KRISTOF Jovens super-heróis numa cabana
- As crises previstas por Ciro Gomes EDITORIAL - O G...
- ''Audiência'' para Ahmadinejad EDITORIAL - O ESTAD...
- Debate eleitoral brasileiro nos EUA VINICIUS TORRE...
- A candidata Bengell Jânio de Freitas
- Uma estranha no espelho Dora Kramer
- A farsa Celso Ming
- Usina de alto risco ADRIANO PIRES E ABEL HOLTZ
- O jogo duplo do Planalto no trato com os sem-terra...
- O dono da festa Luiz Garcia
- Norma Rousseff Fernando de Barros e Silva
- DENIS LERRER ROSENFIELD Viva Marighella!
- Omissão oficial é coautora de crimes Demóstenes To...
- A desindustrialização gradual no Brasil Paulo Godoy
- FERNANDO DE BARROS E SILVA Ciro Gomes: modos de usar
- MARIANO GRONDONA ¿Muere o renace el ciclo de los K...
- O valor da UNE -Editorial O Estado de S.Paulo
- Suely Caldas - Os que têm tudo e os que nada têm
- Primeiro aninho Ferreira Gullar
- O peso das palavras Sergio Fausto
- JOÃO UBALDO RIBEIRO Planejamento familiar
- DORA KRAMER Sequência lógica
- GAUDÊNCIO TORQUATO O OLHO DA NOVA CLASSE MÉDIA
- REGINA ALVAREZ Ampliando o leque
- O maior dom DANUZA LEÃO
- Governo criará "monstro", diz ex-diretor da Aneel
- Plebiscito de proveta-Ruy Fabiano
- Ciro Gomes: "Estão querendo enterrar o defunto com...
- Depois de Belo Monte Celso Ming
- Ciro frustra o Planalto e irrita Lula com elogio a...
- MAURO CHAVES A propaganda subliminar
- Hora da verdade MARCO AURÉLIO NOGUEIRA -
- DORA KRAMER Baliza de conduta
- Arrebentou FERNANDO DE BARROS E SILVA
- UM VAGA-LUME NA SELVA EDITORIAL - O ESTADO DE SÃO ...
- Pobres vão pagar caro pela crise dos ricos Rolf K...
- Dever de casa Regina Alvarez
- Amazônia peruana é nossa Marcos Sá Correa
- Estatais apontam que Belo Monte é inviável
- Belo Monte, o leilão que não houve:: Vinicius Torr...
- Economia brasileira e importações:: Luiz Carlos Me...
- JOÃO MELLÃO NETO Por que a nossa política externa ...
- LUIZ GARCIA Da carochinha
- BARBARA GANCIA Ordem do Rio Branco pelo correio!
- CELSO MING O rombo está aumentando
- DORA KRAMER Pior é impossível
- A conta fictícia de Belo Monte Editorial de O Est...
- VINICIUS TORRES FREIRE Belo Monte, o leilão que nã...
- A notícia linchada Antonio Machado
- NELSON MOTTA Movimento dos Sem Tela
- DORA KRAMER De boné e outros males
- MÍRIAM LEITÃO Decisão britânica
- CELSO MING O vizinho roubado
- A diplomacia do gol contra EDITORIAL - O ESTADO DE...
- Sinais contraditórios EDITORIAL - O GLOBO
- PAULO RENATO SOUZA Salários na educação paulista
- CARLOS ALBERTO SARDENBERG Brasília, um equívoco caro
- Uma carta do Diabo ROBERTO DaMATTA
- Erro até o final Miriam Leitão
- O jogo bruto da candidata
- Dom de confundir Dora Kramer
- RUY CASTRO Zero hora para a mudança
- A bolha de imóveis brasileira Vinicius Torres Freire
- DORA KRAMER Proposta estratégica
- MÍRIAM LEITÃO Custo do inesperado
- CELSO MING A pressão do consumo
- ENIGMA AGRÁRIO XICO GRAZIANO
- A recuperação da economia americana é real Luiz Ca...
- Paulo Guedes É hora de enfrentar o Leviatã brasileiro
- Celso Lafer O Brasil e a nuclearização do Irã
- Carlos Alberto Di Franco Drogas, ingenuidade que mata
- JOSÉ GOLDEMBERG A nova estratégia nuclear dos Esta...
- Yoshiaki Nakano Juros e câmbio de novo!
- Ferreira Gullar Os políticos do lixo
- CELSO LAFER O BRASIL E A NUCLEARIZAÇÃO DO IRÃ
- GAUDÊNCIO TORQUATO CAMPANHA DO MEDO?
-
▼
abril
(259)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA