O Estado de S.Paulo - 22/04/2010
Reduzir o vizinho a mendigo (beggar-thy-neighbour). Essa expressão vem da Grande Depressão e vem sendo usada para designar ataque predatório às exportações de país vizinho por meio da manipulação do câmbio. Um dos economistas que a empregaram nos anos 30 foi o inglês Dennis Robertson.
Em 2001, o então ministro da Economia da Argentina, Domingo Cavallo, acusou o Brasil de "robar al vecino", quando a liberação do câmbio produziu a desvalorização do real enquanto a Argentina mantinha o peso atrelado ao dólar, à paridade de um peso por um dólar, dentro do sistema conhecido como currency board.
Agora que a economia está globalizada e todos os países podem se considerar vizinhos uns dos outros, a expressão voltou a ser empregada para acusar a China de roubar riquezas dos demais países, sejam eles próximos ou distantes.
Os sindicatos americanos estão em campanha aberta contra "o ladrão de empregos", ou seja, contra a China. Na semana passada, a revista americana Foreign Policy publicou artigo intitulado China, the job killer (China, a matadora de empregos), assinado por Fred Bergsten, diretor do Peterson Institute for International Economics, que também aponta o dedo acusador na mesma direção.
A questão em si é polêmica porque nenhum tratado internacional de comércio prevê que a prática de um câmbio desvalorizado deva ser considerada jogo sujo. É verdade que a lei americana dos anos 30 (Smoot-Hawley Tariff Act) autoriza retaliações contra o país que seja considerado sistemático manipulador das cotações das moedas e é assim que políticos e sindicatos americanos pretendem que o câmbio da China seja considerado.
Afora isso, qualquer designação desse tipo será sempre política, pois não se conhece método capaz de traçar a linha divisória a partir da qual a cotação de moeda estrangeira deixa de ser justa e passe a ser considerada resultado de manipulação.
O presidente Hu Jintao acaba de admitir que a China pode adotar um processo de flexibilização gradual do câmbio. Em princípio, essa informação deverá provocar certo alívio nos Estados Unidos e, além disso, desarmar políticos e sindicalistas que preparavam o contra-ataque.
No entanto, ao contrário da crença manifestada por grande número de analistas, a pretendida liberação do câmbio na China não necessariamente provocaria a valorização do yuan. O fator de fundo não é o controle do câmbio por Pequim; é o índice de poupança que hoje na China atinge 51% da renda, um fato por si só impressionante. Quer dizer, apesar de ganhar mal, o chinês médio poupa 51% do seu salário. Em parte isso é possível porque casa, comida, saúde e educação contam com subsídio oficial. Seja como for, o Estado coleta essa poupança e dá a ela a destinação prevista na sua política. Parte substancial é aplicada em títulos do Tesouro dos Estados Unidos e forma as tais reservas que hoje são de US$ 2,5 trilhões.
Se o câmbio for liberado na China, parece provável que o cidadão comum também seja autorizado a aplicar em moeda estrangeira (no caso dólares), ou diretamente, ou por meio de mecanismos que os bancos colocarão ao alcance do público. Se isso acontecer, a demanda por dólares continuará forte, podendo, com isso, provocar um efeito procura que, por sua vez, se encarregará de manter desvalorizado o yuan. Em todo o caso, nessas condições, vai ser difícil continuar acusando a China de roubar o resto do mundo.
Confira
Princípio da precaução
O diário parisiense Le Monde publicou ontem editorial advertindo as autoridades para o excesso de zelo na aplicação do princípio da precaução. Desta vez, o gancho foi a decisão de fechar os céus da Europa para os voos de avião depois da erupção do Eyjafjallajoekull. Foi enorme o prejuízo causado para as empresas aéreas, para o setor de turismo e para tanta gente que perdeu reuniões de trabalho. Essa suspensão dos voos não foi exagerada?
Revisão geral
Algumas aplicações do princípio da precaução podem ter sido equivocadas, como parecem ter sido as providências contra a gripe aviária e alguns produtos transgênicos. Em outros casos, os poderes públicos deixaram passar do ponto apenas para preservar os lucros das empresas. A doença da vaca louca, as contaminações por chumbo e amianto, o desastre de Chernobyl estão entre esses casos. É preciso preservar o interesse público, mas também não se pode pretender viver sob risco zero. Eis aí um equilíbrio difícil.
Entrevista:O Estado inteligente
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