Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, abril 21, 2010

Uma carta do Diabo ROBERTO DaMATTA

O Globo

Caros amigos, o Diabo que, entre muitas coisas, é um hacker consumado, entrou no meu "sistema", ludibriou meus filtros de proteção e de segurança, e deixou a seguinte mensagem: Meu caro, Você continua resistindo, mas — como diz um importante líder da criminalidade cosmopolítica do vosso país, Fernandinho Beira-Mar — você também está dominado. Estou aguardando a sua "coluna da desesperança", quando as banalidades do dia a dia irão substituir o esforço de ler o mundo como algo mais espesso, mais profundo e, como as estrelas daquele céu de veludo que você via em Juiz de Fora com sua primeira namorada, instiga ao menos a dúvida e a uma penosa busca pelo sentido.

Estou quase certo de que, um dia, você também escreverá uma crônica com o viés apocalíptico do tudo ou nada que faz parte do abominável jeito brasileiro de ler o mundo. Vocês só acham que se pode fazer alguma coisa quando o mundo está para acabar. Primeiro chega a tragédia e então, com genuíno horror, meia surpresa e uma contrição e sentimento de culpa pungentes, vocês tomam as medidas cabíveis que, é claro, confirmam as desgraças devidas aos miseráveis produzidos pelo vosso mundo. E como a teoria parte do princípio de que tudo sempre esteve errado, não há como culpar ou sequer responsabilizar alguém, exceto os poderes incontroláveis e inimputáveis da natureza.

Apesar de todos os avanços, vocês continuam prisioneiros da noção de uma "tara de origem": o que começou errado permanece errado e nós, autoridades ou cidadãos, nada podemos fazer. Nem mesmo, como ocorreu num certo burgo afetado pelo temporal, visitar as vítimas que perderam parentes e casas, esse espaço que até aqui no Inferno é fundamental. E, aí neste seu país de Jambon, é a única coisa que presta e funciona.

Está claro, meu amigo, que as vossas autoridades ignoram o papel sagrado e mágico dos que, eleitos, representam e assim personificam (e trazem para uma dimensão humana) a coletividade que os elegeu. É preciso entender que os eleitos estão no lugar de muitos. Como diz um dos meus maiores inimigos, Thomas Mann, representar é mais sublime do que simplesmente ser, pois permite a sensação crítica da entrega a algo maior e mais nobre suspendendo, na ocasião da tragédia, a consciência da dor, da perda e do desabrigo pelo contato solidário com o eleito, pelo único que, por direito, pode ser responsável pela sorte dos desabrigados.

Como Deus está morto, vocês falam da natureza, esquecendo que o poder do planeta e da sua natureza viva e entrelaçada nada mais é do que um símbolo do Padre Eterno. Pois os acidentes naturais lembram limites. Assim, com a modesta ajuda deste seu criado e desde o terremoto que destruiu Lisboa, em 1755, sismo promotor do fim do otimismo Iluminista e aristocrático de um universo hiperordenado, temos — o Criador e eu — dividido as coisas nessa tarefa de revelar o quanto vocês são frágeis e precisam mais uns dos outros do que de nós.

De tudo o que ocorreu na vossa cidade, resta uma importante lição. Aí, em Jambon, vocês não querem viver de modo mais igualitário e equilibrado.

Por isso, as vítimas foram muito mais coerentes do que os administradores.

Pois elas admitem os poderes inescrutáveis e acima de seu controle — esse terrível princípio de realidade que impõe limites; ao passo que a maioria dos dirigentes preferiu ficar com a lenga-lenga malandra que recusa assumir responsabilidade pelo que não se fez. Dizer que não se pode mudar o que existe há 500 anos é o mesmo que assumir que o mundo tem mesmo pobres e ricos e não se pode fazer nada para diminuir essa distância no intuito de, em algum nível, acabar com ela.

No meu vasto entender de Demônio encarregado de promover o teste das bondades e da solidariedade entre vocês em tempos de crise, a maior falha de vossos administradores foi procurar causas múltiplas, quando o desastre foi criado por mim para que vocês realizassem um sério exame de consciência. Mas, pelo visto, e com o sol já radiante desta última semana, vocês vão trocar tal mergulho por programas a serem provavelmente dissolvidos em promessas eleitorais.

Para onde levaria tal introspecção? Ora, para as desigualdades extremas e brutais reinantes em Jambon que eu, volta e meia, revelo por meio de chuvas, trovoadas e ventanias. O Padre Eterno prefere realizar coisas definitivas, como acabar o mundo com o Dilúvio ou algumas cidades pelo fogo.

Eu prefiro coisas mais modestas — bombas atômicas, tortura política, corrupção sistêmica, etnocídios, terrorismo — e, no entanto, mais controversas.

Afinal, sou ou não o Demo que instala a incomensurabilidade, a contradição destrutiva? Esse lado contraditório da Humanidade? Atenciosamente, Lúcifer, B.A, M.A., Ph.D (ex-Faraó, Imperador, Rei, Presidente, Governador, General, Líder Messiânico, Revolucionário, Papa, Pastor, Juiz, Professor e Banqueiro)

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