O GLOBO - 30/04/10
O Banco Central tem sido autônomo, mas ele trabalha sozinho. Na política econômica, parece haver dois governos: o Ministério da Fazenda aumenta gasto, estimula a economia, incentiva o crescimento do crédito; e o Banco Central tenta compensar. Essa dupla face aparece em outras áreas. O Planalto propôs a revisão da Lei de Anistia. A AGU advogou o oposto no Supremo.
Normal mudar de ideia. O esquisito no governo Lula é que ele tem duas ideias opostas sobre o mesmo assunto, ao mesmo tempo. No caso da Lei da Anistia, o tema estava para ser discutido no Supremo.
A dualidade é mais nociva na economia.
Este é um ano complexo.
A economia está acelerando, a inflação aumentou, o mundo ainda está vivendo a mesma crise, no seu segundo capítulo. Haverá mais turbulência na Europa nas próximas semanas e a crise fiscal continuará com eles por muito tempo. Isso manterá o mundo mais instável, o crescimento mundial mais incerto. Nosso desafio não é crescer este ano apenas, em que estamos recuperando o ano perdido de 2009. O difícil, há muito tempo, tem sido manter o crescimento por longo período.
Em geral, quando se analisam as razões de o país não conseguir ter um período sustentado de crescimento, há dois diagnósticos.
Um, sustenta que faltam as ferramentas básicas.
A taxa de poupança é baixa, o investimento é insuficiente, o governo tem aumentado muito seus gastos, a carga tributária é alta. Mas há quem acredite que os juros altos e o câmbio valorizado impedem o crescimento e que ambos são decorrentes da política de metas de inflação. No governo, ninguém dirá isso abertamente porque significaria atacar a base da política anti-inflacionária. Mas se fossem sinceros, muitos diriam, no governo, no Ministério da Fazenda, que o país não cresce porque o BC é conservador e fica elevando os juros por alguma maldade intrínseca, para satisfazer o mercado, ou porque é obrigado pela camisa de força das metas de inflação. Se o debate fosse sincero e aberto seria melhor para combater velhos equívocos da visão brasileira de crescimento que foram fortalecidos na crise.
Os gastos de custeio têm crescido de forma exponencial, sistematicamente acima do PIB (Produto Interno Bruto), numa taxa que fortalece as amarras ao crescimento; o surto de estatismo eleva ainda mais o risco fiscal; os excessos de concessão de crédito através de bancos públicos, que depois exigem capitalizações do Tesouro, são uma bomba de efeito retardado armada hoje no coração da economia, o crédito público subsidiado representa um gasto invisível e crescente.
Os estímulos fiscais concedidos a alguns setores do consumo além de serem renúncia fiscal, portanto gasto, não foram integralmente retirados. Tudo isso é inflacionário.
O mesmo governo que amplia gasto, estimula a economia com renúncia fiscal e concede crédito subsidiado, eleva a taxa de juros para conter o efeito inflacionário do aquecimento.
Assim, como duas pessoas no mesmo barco remando em direção contrária.
Os juros têm que ser ainda maior porque a política monetária não tem ajuda das políticas fiscal e creditícia.
Uma parte do mercado de crédito é indiferente às taxas de juros. Os empréstimos concedidos pelo BNDES ao consórcio de Belo Monte serão corrigidos a 4% ao ano, independentemente do fato de que desde ontem o custo da dívida pública subiu de 8,75% para 9,5%. E esse contrato de financiamento, lesivo aos interesses do Tesouro e do contribuinte, se propõe a ser assim até o ano 2040. Ninguém tem este prazo para pagar, ninguém paga só isso. É um acinte e um escândalo, além de ser gasto público. A política monetária brasileira não têm efeito sobre bolsões de crédito que pagam juros beneficiados. Já os juros pagos por pessoas e empresas que contraíram empréstimos no mercado privado são exorbitantes, paralisantes, punitivos. Não são os consumidores que reclamaram da alta dos juros, mas sim os que são beneficiados pelos bolsões de dinheiro barato.
A Fiesp soltou uma nota toda agressiva minutos depois do fim da reunião do Copom. A federação composta por tantos clientes dos juros subsidiados está atrapalhada nos últimos dias com as explicações para provar que a indústria tem uma alta capacidade ociosa, apesar de a FGV dizer o contrário.
A Abdib, que subiu no palanque do PAC-2, fez também sua versão dos ataques ao Banco Central.
Ontem, o BC comemorou o fato de os juros ao consumidor terem chegado numa taxa média de 40% em março. No ano passado, era 55%. Essa é a mais baixa taxa desde 1994. Uma vitória e um aleijão, ao mesmo tempo.
Juros de 40% não fazem sentido em país algum do mundo. Experimente contar para um estrangeiro, de qualquer país, o motivo da comemoração.
A crise mundial de 2008/2009 serve como um álibi para a gastança brasileira.
Comparam-se os dados, e o Brasil não parece estar sob qualquer risco de crise fiscal. O país tem um risco fiscal latente que não aparece nos números. Por não combatê-lo, acaba tendo uma dívida muito mais cara, o que realimenta o risco fiscal. Esse é o preço de ter uma política econômica com duas faces.