Dos seis presidentes civis eleitos diretamente pelo voto popular no Brasil pós-1945, nada menos que quatro - Vargas, Quadros, Collor e Lula - tinham ou têm características messiânicas. Um belo livro de José Murilo de Carvalho, O Longo Caminho, publicado oito anos atrás, apresenta uma hipótese para esse fenômeno, relevante para o entendimento de nosso passado, de nosso presente - e de nosso futuro pós-Lula.
José Murilo nota que o processo de constituição de nossa cidadania seguiu lógica inversa à do caso clássico, tão estudado, da sequência inglesa, "na qual as liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo".
Aqui, no Brasil, "primeiro vieram os direitos sociais, implantados em períodos de supressão de direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular" (Vargas durante o Estado Novo). "Depois vieram os direitos políticos de maneira também bizarra: a maior expansão do direito de voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime." Finalmente, vieram os direitos civis, embora ainda hoje nem sempre acessíveis às pessoas muito "comuns".
O autor nota que seria tolo achar que só há um caminho para a cidadania plena. Seu ponto fundamental é que caminhos diferentes afetam o produto final, o tipo de cidadão e de democracia que se gera. Isso é particularmente verdade quando há inversão da sequência.
Uma primeira consequência importante é a excessiva valorização do Poder Executivo. Se direitos sociais foram implantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo. O Estado é visto como todo-poderoso: na pior hipótese, como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalista de empregos e favores. A ação política, nessa visão, é, sobretudo, orientada para a negociação direta com o governo, sem passar pela mediação da representação.
Uma segunda consequência dessa forte preferência revelada pelo Executivo é a busca por um messias político, por um salvador da Pátria. Como a nossa experiência democrática é relativamente curta e mazelas sociais de toda ordem ainda persistem, pode crescer também a impaciência popular. Daí a busca de soluções mais rápidas por lideranças carismáticas e messiânicas. Como os quatro presidentes mencionados no primeiro parágrafo deste artigo, que, à diferença dos outros dois (JK e FHC), adotaram ou adquiriram certo vezo mandonista e uma propensão ao apelo direto às massas quando defrontados com reais ou percebidas limitações ao exercício mais amplo de seus poderes.
Uma terceira consequência da inversão de sequência e da excessiva valorização e hipertrofia do Executivo e seus poderes é a desvalorização do Legislativo e dos seus titulares. As eleições legislativas sempre despertam menor interesse que as do Executivo. A campanha pelas eleições diretas referia-se à escolha do presidente da República, não à defesa de eleições legislativas. Há uma convicção abstrata da importância dos partidos e do Congresso como mecanismos de representação, convicção esta que não se reflete em avaliação positiva de sua atuação.
Uma quarta, e fundamental, consequência de nossa "sequência inversa" é que esta favoreceu uma visão corporativista dos interesses coletivos. Não se pode dizer que a culpa foi toda do Estado Novo e da clara influência que sobre ele exerceram, por exemplo, os corporativismos do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemão. Mas o autor nota, corretamente, que "o grande êxito de Vargas indica que sua política atingiu um ponto sensível da cultura nacional".
Com efeito, a distribuição dos benefícios sociais por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro do sindicalismo corporativo encontrou entre nós terreno fértil para se enraizar. Os benefícios sociais não eram considerados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e privilégios distribuídos pelo Estado. E este passou a ser um distribuidor de recursos públicos, sempre escassos relativamente à voracidade das demandas com que se defronta.
Seria possível olhar para todos esses fenômenos em perspectiva e, com complacente bonomia, chegar à conclusão de que a democracia brasileira precisa de tempo para, por meio de seus mecanismos de pesos e contrapesos, fazer os ajustes e correções de rumos necessários.
Mas o excesso de complacência é particularmente preocupante neste momento. Por que digo isso? Porque não se trata apenas de reconhecer que a supervalorização do Poder Executivo, que a suposta supremacia do Estado sobre a sociedade, que o clientelismo, o corporativismo e a busca por messias e salvadores da Pátria têm profundas raízes históricas entre nós.
Trata-se de saber, por meio do debate público, se estamos caminhando para uma clara reafirmação política dessa tradição do século passado ou se nos estamos afastando, ainda que gradualmente, desse anacrônico legado e construindo uma sociedade mais moderna. Uma sociedade que não seja contra o Estado, mas apenas - e exatamente porque a favor da res publica - seja contra a apropriação indébita e o uso indevido de recursos públicos e contra a ocupação e o aparelhamento da máquina pública para servir a interesses eleitorais, corporativistas, partidários e clientelistas. Os próximos 12 meses muito dirão.