ENTRE 1959 E 1961 , quando nasceu e eclodiu o movimento neoconcreto, tornei-me amigo de Hélio Oiticica, que eu tinha como uma espécie de irmão mais novo. Ele, aliás, era o mais moço do grupo e o último a se juntar a ele, tanto que não participou da primeira exposição neoconcreta, inaugurada em março de 1959, no MAM do Rio, nem assinou o manifesto, publicado naquela ocasião.
Mas Hélio, de todos, era o mais determinado a buscar novos caminhos de expressão, a levar adiante as propostas que surgiam do trabalho e da troca de ideias e de experiências. Ele estava convencido de que a arte neoconcreta abrira um território novo à criação artística. Esse era um tema frequente em nossas conversas, que, na verdade, se limitavam a algumas hipóteses sem resposta. A resposta não estava no discurso, mas no trabalho criador.
O incêndio, que recentemente destruiu grande parte de suas obras, chegou-me como uma notícia inverossímil pelo telefone, quando a repórter me falou da perda de mil obras, o que me pareceu exagero uma vez que, pela própria natureza de suas criações, dificilmente teria feito tantas. De qualquer modo, as perdas seriam muitas. Pois incluiriam telas, desenhos, relevos espaciais, instalações e todos os "Bólides" e "Parangolés", que estavam na sala onde ocorreu o incêndio.
Uma perda irreparável, no plano artístico, impossível de calcular, uma vez que ali se teria perdido grande parte da própria história do artista. Agora se sabe que boa parte das obras se salvou e outras serão recuperadas ou refeitas.
Ainda assim, foi um desastre lamentável que, atinge todas as pessoas amantes da arte, atinge-me particularmente pela ligação que mantive com ele, no momento mesmo em que inventava o seu próprio caminho. E, mais ainda, porque o incêndio ocorreu onde ocorreu, na casa da Gávea Pequena, onde foi construído, em 1960, o "Poema Enterrado".
Cabe dizer ao leitor, que talvez não o saiba, o que era esse poema. A coisa começou quando publiquei no Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil" um poema concreto que, para se realizar de fato, obrigava o leitor a ler, seguidamente, a palavra "verde", que se repetia até explodir na palavra "erva". Só que o leitor, ao perceber a repetição, não fazia a leitura prevista, por desnecessária.
Esse fracasso me levou a inventar um poema escrito, palavra a palavra, no verso das páginas e a cortá-las, conforme a necessidade do poema. Nasceu, assim, o livro-poema, que me levou aos poemas espaciais (placa de madeira com um cubo colorido que ocultava uma palavra), que obrigavam o leitor mover as peças do poema.
Pois bem, depois de levá-lo a participar do poema, manuseando-o, usando a mão, decidi levá-lo a usar o corpo -e bolei o "Poema Enterrado": uma sala no subsolo, a que o leitor descia por uma escada e entrava no poema. Sua invenção foi no final de 1959, quando publiquei, no "SDJB", a planta do poema e sua descrição.
Hélio ligou-me empolgado e dizendo que ia obrigar o pai a construir o poema no quintal da nova casa da família, essa mesma casa, onde houve agora o incêndio. Pronto o poema, marcou-se a inauguração num domingo, mas, como chovera muito na véspera, ao abrirmos-lhe a porta, vimos que estava inundado, para desapontamento de todos nós.
Soube, muitos anos depois da morte do Hélio, que o poema havia sido reconstruído, mas não fui informado. Esse poema nasceu azarado: o MAM de São Paulo tentou construí-lo, no Ibirapuera, mas a comissão estadual de cultura o proibiu.
De qualquer modo, o incêndio de agora junta-se em minha mente à inundação do poema, numa relação estranha que sinto sem saber explicar. Tenho diante dos olhos, agora, o rosto tenso de Oiticica, sentado comigo a uma mesa do Zepelin, pouco depois de seu retorno de New York. Daí a poucos meses, ele é encontrado agonizando no pequeno apartamento em que passara a morar, em Ipanema.
Hélio e Lygia Clark levaram às últimas consequências a proposta básica do neoconcretismo, de acrescentar à experiência visual -que define a pintura, a gravura e a escultura- o relacionamento corporal com a obra. Essa participação do espectador conduz, no caso do Hélio Oiticica, à série de "Bólides", que são, a meu ver, o momento-limite de sua busca, antes dos "Parangolés" e outras obras, de difícil definição estética. Algumas das experiências dele e de Lygia Clark anteciparam certos caminhos que a arte tomaria, a partir dos anos 60 e 70. Daí o reconhecimento internacional de que gozam. Isso nos dá a medida do que se poderia ter perdido com o incêndio de outubro passado.
Mas Hélio, de todos, era o mais determinado a buscar novos caminhos de expressão, a levar adiante as propostas que surgiam do trabalho e da troca de ideias e de experiências. Ele estava convencido de que a arte neoconcreta abrira um território novo à criação artística. Esse era um tema frequente em nossas conversas, que, na verdade, se limitavam a algumas hipóteses sem resposta. A resposta não estava no discurso, mas no trabalho criador.
O incêndio, que recentemente destruiu grande parte de suas obras, chegou-me como uma notícia inverossímil pelo telefone, quando a repórter me falou da perda de mil obras, o que me pareceu exagero uma vez que, pela própria natureza de suas criações, dificilmente teria feito tantas. De qualquer modo, as perdas seriam muitas. Pois incluiriam telas, desenhos, relevos espaciais, instalações e todos os "Bólides" e "Parangolés", que estavam na sala onde ocorreu o incêndio.
Uma perda irreparável, no plano artístico, impossível de calcular, uma vez que ali se teria perdido grande parte da própria história do artista. Agora se sabe que boa parte das obras se salvou e outras serão recuperadas ou refeitas.
Ainda assim, foi um desastre lamentável que, atinge todas as pessoas amantes da arte, atinge-me particularmente pela ligação que mantive com ele, no momento mesmo em que inventava o seu próprio caminho. E, mais ainda, porque o incêndio ocorreu onde ocorreu, na casa da Gávea Pequena, onde foi construído, em 1960, o "Poema Enterrado".
Cabe dizer ao leitor, que talvez não o saiba, o que era esse poema. A coisa começou quando publiquei no Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil" um poema concreto que, para se realizar de fato, obrigava o leitor a ler, seguidamente, a palavra "verde", que se repetia até explodir na palavra "erva". Só que o leitor, ao perceber a repetição, não fazia a leitura prevista, por desnecessária.
Esse fracasso me levou a inventar um poema escrito, palavra a palavra, no verso das páginas e a cortá-las, conforme a necessidade do poema. Nasceu, assim, o livro-poema, que me levou aos poemas espaciais (placa de madeira com um cubo colorido que ocultava uma palavra), que obrigavam o leitor mover as peças do poema.
Pois bem, depois de levá-lo a participar do poema, manuseando-o, usando a mão, decidi levá-lo a usar o corpo -e bolei o "Poema Enterrado": uma sala no subsolo, a que o leitor descia por uma escada e entrava no poema. Sua invenção foi no final de 1959, quando publiquei, no "SDJB", a planta do poema e sua descrição.
Hélio ligou-me empolgado e dizendo que ia obrigar o pai a construir o poema no quintal da nova casa da família, essa mesma casa, onde houve agora o incêndio. Pronto o poema, marcou-se a inauguração num domingo, mas, como chovera muito na véspera, ao abrirmos-lhe a porta, vimos que estava inundado, para desapontamento de todos nós.
Soube, muitos anos depois da morte do Hélio, que o poema havia sido reconstruído, mas não fui informado. Esse poema nasceu azarado: o MAM de São Paulo tentou construí-lo, no Ibirapuera, mas a comissão estadual de cultura o proibiu.
De qualquer modo, o incêndio de agora junta-se em minha mente à inundação do poema, numa relação estranha que sinto sem saber explicar. Tenho diante dos olhos, agora, o rosto tenso de Oiticica, sentado comigo a uma mesa do Zepelin, pouco depois de seu retorno de New York. Daí a poucos meses, ele é encontrado agonizando no pequeno apartamento em que passara a morar, em Ipanema.
Hélio e Lygia Clark levaram às últimas consequências a proposta básica do neoconcretismo, de acrescentar à experiência visual -que define a pintura, a gravura e a escultura- o relacionamento corporal com a obra. Essa participação do espectador conduz, no caso do Hélio Oiticica, à série de "Bólides", que são, a meu ver, o momento-limite de sua busca, antes dos "Parangolés" e outras obras, de difícil definição estética. Algumas das experiências dele e de Lygia Clark anteciparam certos caminhos que a arte tomaria, a partir dos anos 60 e 70. Daí o reconhecimento internacional de que gozam. Isso nos dá a medida do que se poderia ter perdido com o incêndio de outubro passado.