O GLOBO
À medida que fica clara a estratégia lulista de tentar transformar a sucessão presidencial em uma pelada de futebol “nós contra eles”, com o papel do Estado como grande divisor de águas das políticas econômicas de seu governo e as dos tucanos na era FH, também se torna evidente que o governo Lula vem acelerando sua transformação, neste segundo mandato, na direção de um Estado populista e patrimonialista, dependente cada vez mais da vontade do líder carismático, que não aceita os limites da lei, muito menos as críticas.
Ao mesmo tempo em que aprofunda suas críticas aos órgãos fiscalizadores do Estado, como o Ibama ou o Tribunal de Contas da União (TCU), tentando constrangêlos, o presidente Lula insiste na tentativa de criticar e desmoralizar os veículos da grande imprensa, no pressuposto de que, com sua imensa popularidade, pode controlar a opinião pública.
Quando diz que o papel da imprensa não é o de fiscalizar nem de denunciar desvios, mas apenas o de informar, e que os órgãos fiscalizadores estão atravancando o progresso do país, o presidente Lula está revelando sua veia autoritária, e a maneira muito pessoal como quer dirigir o país, como dirigia o sindicato, como uma coisa sua, que pode ser repartida entre os amigos.
Muito a propósito, na contramão do que pretende o governo brasileiro, no Senado dos Estados Unidos o senador democrata da Pensilvânia Arlen Specter fez um discurso, recentemente, em defesa de um projeto que dá mais proteção aos jornalistas, em que afirmou: “Nós ainda recebemos a maior parte das informações de jornalistas investigativos. Se não se protegerem as fontes, haverá muita corrupção, malfeitorias que não serão detectadas e ficarão impunes”.
Na montagem de sua estratégia eleitoral, para enfrentar a disputa na base do “pão, pão, queijo, queijo”, o problema é saber qual é o time do presidente.
Enquanto tenta montar, à base da fisiologia mais desbragada, uma vasta coligação partidária com o único objetivo de ter o maior tempo de propaganda televisiva possível, o presidente Lula está caminhando cada vez mais para a esquerda autoritária.
Como pode resistir uma aliança política que abriga partidos de direita e de centro no apoio a Dilma Rousseff, e obter os votos desse eleitorado, se o próprio Lula faz questão de se comparar a Hugo Chávez? Como explicar a inclusão, entre os coordenadores da campanha oficial, do assessor especial Marco Aurélio Garcia, tão claramente identificado com a esquerda latinoamericana? O que têm a ver com essa tendência partidos como o PP, PTB, PRB e congêneres? Que governo vai sair dessa misturada? Qual será a candidata oficial, a ex-guerrilheira ou a gerente das grandes obras do nacionaldesenvolvimentismo? As críticas à visão patrimonialista exacerbada neste segundo governo Lula não ficam restritas apenas ao artigo de Fernando Henrique Cardoso, que chamou a atenção para a maneira caudilhesca com que Lula vem governando, ou à do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, presidente do Conselho de Administração da Bolsa de Valores, que, em recente entrevista ao jornal “Valor Econômico”, denunciou o “patrimonialismo” do governo Lula, o Estado servindo a interesses partidários, privados e sindicais.
Também o sociólogo Luiz Werneck Vianna, professor do Iuperj, em recente artigo para o site Gramsci e o Brasil, analisa a transformação do governo Lula neste segundo mandato, quando “a crise, que denunciou a incapacidade do mercado de se autorregular, ao trazer de volta o tema do Estado e do seu papel como agência organizadora da economia, atualizou, imprevistamente, o repertório da tradição republicana brasileira”.
Werneck Vianna identifica outros períodos em que essa mesma vertente atuou na condução do desenvolvimento econômico brasileiro: na Era Vargas, nos anos JK e no período militar: “(...) a ênfase que passa a ser concedida à questão nacional, com os patéticos postulados de grandeza nacional que já se fazem ouvir; com o desenvolvimentismo, quando políticas estratégicas são conduzidas pelo Estado sem anuência explícita da sociedade civil e suas instâncias de deliberação”.
O sociólogo ressalta que a mobilização de tal tipo de política “tem ignorado a crítica que lhe foi feita pelos movimentos democráticos e populares, no curso de suas lutas contra o regime autoritário, consagrada institucionalmente na Carta de 1988, que, ao preservar a instância do público como dimensão estratégica, submeteu-a ao controle democrático da sociedade”.
Werneck Vianna recorda que “a esquerda que se encontra na chefia do governo” está se apropriando de uma política que foi alvo de suas principais críticas, que identificavam o nacionaldesenvolvimentismo com “uma típica floração autoritária da ordem patrimonial brasileira”.
Ele ressalta que, “mais que mudanças tópicas ou de ênfase, é toda uma forma de Estado que ressurge, em particular no novo papel concedido às corporações e à representação funcional”.
Na análise de Werneck Vianna, “a política é capturada pelo Estado; de outra parte, o presidencialismo de coalizão em vigência converte os partidos políticos em partidos de Estado e sem representação significativa na sociedade civil (...), levando a uma revalorização acrítica do Estado Novo e até mesmo de governos do regime militar”.
Não é um bom presságio para a democracia brasileira “a sociedade, em sua diversidade, se deixar subsumir ao Estado, conferindo à liderança de um chefe de governo carismático a tarefa de cimentar a unidade dos seus contrários”.
Como também é “falso e anacrônico”, afirma Werneck Vianna, “conceber a próxima sucessão eleitoral como a reedição dos embates entre a UDN e o PTB. Estado forte, sim, mas sob controle da sociedade, e não sobreposto assimetricamente a ela”.
Entrevista:O Estado inteligente
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