Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 03, 2009

A Volta para Casa, de Bernhard Schlink

Jornada sem descanso

A Volta para Casa, novo romance do alemão Bernhard Schlink,
revisita o legado do nazismo a partir do drama familiar de um
homem que busca descobrir quem foi seu pai


Moacyr Scliar

Gaetan Bally/ Corbis/ Latinstock
CULPA HOMÉRICA
Bernhard Schlink: referências à Odisseia
e remorso nacional infindável

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O escritor alemão Bernhard Sch-link atribui sua paixão pela literatura ao estímulo que lhe foi dado, na juventude, por um professor que introduziu seus alunos na obra de Dostoievski, Tolstoi, Dickens. Mais tarde, no entanto, Schlink descobriu que esse amável mestre fora um membro da Gestapo, a polícia política nazista – e que ele participara, inclusive, de execuções. Nasceu daí uma dolorosa perplexidade, partilhada pela geração pós-guerra, e que, no caso de Schlink (nascido em 1944), foi fundamental para sua obra literária. Juiz e professor de direito da Universidade Humboldt, Schlink estreou na ficção com novelas policiais. Ganhou fama internacional, em 1995, com O Leitor, lançado recentemente no Brasil pela editora Record, romance que deu origem ao filme de mesmo título e cujo tema é o caso amoroso de um jovem com uma mulher mais velha – que oculta um passado nazista. A Volta para Casa (tradução de Claudia Beck Abeling Szabo; Record; 368 páginas; 39,90 reais) revisita a mesma insanável culpa alemã.

Narrado na primeira pessoa, o livro conta a trajetória do jovem Peter Debauer. Órfão de pai, criado por uma mãe com a qual tem uma relação distante, o menino passa férias na Suíça com os avós paternos, editores de romances populares. Ao usar o verso de provas tipográficas como rascunho, descobre o texto de um romance que narra o regresso para casa de um soldado alemão, Karl, sobrevivente do front russo. Peter fica obcecado pela história, de autoria desconhecida. Já adulto, começa a investigar quem é o escritor. Ao mesmo tempo quer descobrir quem é seu pai, supostamente morto, uma dúvida que a mãe não esclarece. Quando está para se casar, Peter encontra problemas com a documentação, que o obrigam a investigar, agora sistematicamente, sua filiação. No final, as coisas se encaixam como as peças de um quebra-cabeça.

O romance, porém, não é apenas uma história de investigação centrada no velho tema do "manuscrito misterioso". Como pano de fundo, temos a realidade de nosso tempo (um capítulo, por exemplo, é dedicado à queda do Muro de Berlim). São constantes, também, as referências à Odisseia, de Homero, que fala da aventureira jornada do guerreiro grego Ulisses. Questão crucial: trata-se da história de uma volta para casa? Não, conclui o protagonista. Ulisses volta, mas apenas para partir de novo. Não há descanso para o herói grego – e nem para a consciência histórica alemã.

Fato comum na ficção de Schlink, o romance tem muito de autobiográfico. Como o personagem, ele tem formação jurídica. Seus avós também viviam na Suíça e eram editores de literatura barata. Sem grandes inovações estilísticas, e às vezes um tanto pesado em seus momentos mais digressivos, A Volta para Casa, no entanto, mantém o leitor amarrado ao drama pessoal de Peter – que é, em certa medida, o drama de seu país. O legado pós-guerra da Alemanha, que já teve em Günter Grass um intérprete famoso, continua dando seus frutos culpados.

Liane Neves

Resenhista premiado
Colaborador assíduo de VEJA – e autor da resenha desta página –, o escritor gaúcho Moacyr Scliar (foto abaixo), 72 anos, foi o vencedor do Jabuti, um dos mais prestigiosos prêmios literários do Brasil, na categoria romance. A distinção – anunciada na semana passada – foi concedida ao romance Manual da Paixão Solitária (Companhia das Letras), uma ficção sobre Onan, personagem do Gênesis.


LIVROS

Trecho de A Volta para Casa,
de Bernhard Schlink

1

Na infância, eu passava as férias com meus avós, na Suíça. Minha mãe me levava à estação, me colocava no trem; com sorte, eu podia ficar o tempo todo sentado e, depois de seis horas de viagem, chegava à plataforma onde meu avô estava me esperando. Se tivesse azar, era preciso fazer baldeação na fronteira. Certa vez eu estava chorando dentro de um trem errado, até que um condutor simpático enxugou minhas lágrimas e me trocou de trem algumas estações depois, confiando- me ao próximo condutor, que, por sua vez, me encaminhou ao seguinte, de maneira que cheguei ao meu destino passando por uma corrente de condutores.

Eu gostava das viagens de trem: as sequências de paisagens e de cidades, o aconchego da cabine, a independência. Tinha comigo a passagem e o passaporte, comida e leituras; não precisava de ninguém e a ninguém era obrigado a obedecer. Nos trens suíços, sentia falta das cabines. Por outro lado, todo assento ficava ou na janela ou no corredor, e eu não precisava me preocupar em ficar preso no meio de uma cabine. Além disso, a madeira clara dos assentos suíços era mais bonita que o plástico marrom-avermelhado dos alemães, assim como o cinza dos vagões, a inscrição em três línguas "SBB - CFF - FFS" e o escudo com a cruz branca sobre o fundo vermelho eram mais elegantes do que o verde sujo com a sigla "DB". Eu me sentia orgulhoso em ser metade suíço, mesmo achando a sordidez dos trens alemães tão familiar como a sordidez da cidade onde minha mãe e eu morávamos e a das pessoas entre as quais vivíamos.

A estação da grande cidade junto ao lago, na qual a viagem terminava, era o fim da linha. Eu tinha apenas de caminhar pela plataforma para encontrar meu avô: grande e forte, olhos escuros, bigode espesso e branco, careca, com uma jaqueta leve de linho, chapéu de palha e bengala. Ele irradiava segurança. E para mim continuou sendo grande - mesmo depois de eu ultrapassá-lo - e forte - também quando teve de se apoiar na bengala. Eu já estava na universidade e às vezes ele ainda pegava na minha mão ao caminhar. Isso me perturbava, mas não era desagradável.

Meus avós viviam junto ao lago, algumas cidadezinhas adiante; se o tempo estivesse bom, vovô e eu não seguíamos o trem, mas o barco. Meu preferido era o velho vapor de roda, em cujo centro dava para ver em ação as barras e os pistões de bronze e aço, reluzentes de graxa. Havia muitos deques, abertos e fechados. Ficávamos no da frente, aberto, inspirávamos o vento, observávamos as cidadezinhas aparecerem e sumirem nas margens, as gaivotas fazendo círculos sobre o barco, os veleiros pavoneando suas velas infladas no lago e os esquiadores demonstrando suas artes aquáticas. Às vezes enxergávamos os Alpes por trás das montanhas, e vovô recitava os nomes dos picos. A cada vez me parecia um milagre que o caminho de luz que o sol lançava sobre a água, abrindo-se calmamente no centro e nos lados em milhares de mosaicos dançantes, acompanhasse o barco. Tenho certeza de que vovô me disse que isso tem uma explicação óptica. A cada vez, ainda hoje, me parece um milagre: o caminho de luz começa lá onde estou.


2

No verão dos meus oito anos, minha mãe estava sem dinheiro para a minha passagem. Ela encontrou, não sei como, um caminhoneiro para me levar até a fronteira, e que de lá me entregaria a outro caminhoneiro, que iria me deixar na casa dos meus avós.

O ponto de encontro era a estação de cargas. Minha mãe tinha um compromisso e não podia ficar; ela me deixou na entrada com a mala e me orientou a não sair do lugar. Em pé, eu olhava para todos os caminhões que passavam com medo, alívio e, em seguida, decepção. Eles eram mais altos, faziam mais barulho e fediam a uma fumaça mais preta do que eu tinha notado até então. Eram monstros.

Não sei o quanto fiquei esperando. Eu ainda não tinha relógio. Depois de algum tempo, me sentei na mala e saltei várias vezes quando parecia que um caminhão reduzia a marcha e queria parar. Finalmente um parou; o motorista me levantou com minha mala, e seu ajudante me colocou na cama alta atrás do banco do motorista. Eu tinha de ficar com a boca fechada, não devia levantar a cabeça acima da lateral da cama e era para dormir. Ainda estava claro, mas não consegui pegar no sono mesmo quando escureceu. No começo, o motorista e o ajudante se viravam de vez em quando e xingavam quando minha cabeça aparecia sobre a lateral da cama. Depois se esqueciam de mim, e eu olhava para fora.

Meu campo de visão era pequeno, mas eu podia ver o pôr do sol pela janela lateral ao lado do ajudante. Só entendia frases soltas da conversa entre o motorista e o ajudante; falavam de americanos, franceses, entregas e pagamentos. O barulho constante, a trepidação regular e abafada do caminhão ao passar pelas grandes placas, que na época pavimentavam a estrada, quase me fizeram adormecer. Mas logo a estrada acabou, e passamos para estradas de terra ruins, montanhosas, nas quais o motorista não podia desviar dos buracos e precisava ficar o tempo todo mudando de marcha. Foi uma viagem intranquila pela noite.

O caminhão parava muitas vezes, rostos apareciam nas janelas laterais, motorista e ajudante desciam, abriam a caçamba, empurrando e empilhando cargas. Algumas paradas eram fábricas e depósitos com lâmpadas claras e vozes altas, outras escuros postos de gasolina, estacionamentos e trilhas. Talvez o motorista e o ajudante tenham aproveitado para se desincumbir de tarefas e negócios próprios, contrabandos ou dissimulações, gastando mais tempo do que o previsto.

De todo modo, chegamos tarde demais à fronteira, o outro caminhão já havia partido, e eu fiquei por algumas horas na madrugada numa praça da cidade, cujo nome não sei mais. Ao redor da praça havia uma igreja, uma ou outra casa nova e várias sem telhados e sem vidros nas janelas. Ao nascer do sol, chegaram pessoas e montaram uma feira. Elas traziam sacos, caixas e cestos em carretas grandes, rasas, de duas rodas, puxadas por cordas. Fiquei com medo do capitão e do timoneiro do caminhão durante toda a noite, de um ataque de piratas, de um acidente e de que eu precisasse ir ao banheiro. O medo de agora, de chamar a atenção de alguém que me controlasse, era o mesmo medo de antes, de que ninguém me notasse e não tomasse conta de mim.

Quando o sol ficou tão quente que comecei a ficar desconfortável no banco sem sombra, do qual não me atrevia a me afastar, um carro de capota abaixada parou diante de mim, rente à calçada. O motorista não saiu de seu lugar. A passageira desceu, colocou minha mala no porta-malas e apontou o banco de trás para mim. Será que foi por causa do carro grande, das roupas chamativas do motorista e da passageira, de seus gestos confiantes e despreocupados ou do fato de terem me comprado o primeiro sorvete da minha vida ao cruzarmos a fronteira da Suíça? Durante muito tempo, quando escutava falar ou lia a respeito de gente rica, pensava neles. Será que eles eram contrabandistas ou receptadores como os caminhoneiros? Eu também suspeitava deles, embora os dois - que eram jovens - me tratassem como a um irmão menor, de maneira simpática, entregue na hora certa do almoço na casa dos avós.


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