Notícias de um sequestro
Surgem evidências de que os terroristas das Farc estão agindo
na Venezuela. O narcoterror sequestrou um empresário brasileiro,
desaparecido há dois meses, e cobra resgate da família
Diego Escosteguy, de Boa Vista
Antonio Milena | FRONTEIRA MINADA Militares do Exército brasileiro em manobra na selva amazônica: as Farc estão cada vez mais perto do Brasil |
Senhora, nós somos das Farc e estamos com seu marido", anunciou tranquilamente a voz masculina do outro lado da linha, num espanhol de sotaque colombiano. "Ele será executado se a senhora não seguir nossas instruções." Marinêz da Silva Pinho ouviu as ordens em silêncio – e desmaiou. Aquela voz colombiana confirmara seus mais terríveis medos: seu marido, o empresário brasileiro Vicente Aguiar Vieira, não havia se perdido no distrito de Ciudad Bolívar, na Venezuela, onde estava quando deu notícias pela última vez, dois dias antes dessa ligação. Era um sequestro. Naquele mesmo dia, Marinêz recebeu uma carta manuscrita e assinada pelo marido, na qual ele confirmava estar em poder das Farc e dizia se encontrar em "montanhas da Colômbia". Em três páginas, possivelmente ditadas pelos sequestradores, Vicente orientava a esposa a vender os bens da família para pagar o resgate, estipulado em 2,5 milhões de bolívares, a moeda venezuelana (equivalentes a cerca de 800 000 reais). Marinêz só conhecia as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia pelo noticiário televisivo, mas fez o que lhe pediram. Não alertou as autoridades, levantou parte do dinheiro, deu prosseguimento às negociações e mobilizou parentes para fazer a troca nas selvas colombianas. Até o momento, os esforços foram em vão. Seu marido está há dois meses em cativeiro – e pode, a depender do avanço das investigações policiais, tornar-se o primeiro brasileiro oficialmente vítima das Farc fora da Colômbia.
Os terroristas que atuam nas selvas da Colômbia já sequestraram brasileiros antes. Em 1996, dois engenheiros da empreiteira Andrade Gutierrez ficaram sete meses presos, até que o resgate fosse pago. Escaparam com vida. A situação do empresário é bem mais grave. Ele não tem nenhuma salvaguarda política ou econômica, como tiveram os dois engenheiros. Está, a bem da verdade, abandonado na selva à própria sorte. Não se sabe nem se ele está vivo ou morto. Sabe-se apenas que a situação do brasileiro se deteriorou drasticamente há três semanas, quando os sequestradores resolveram cortar as comunicações com a família do comerciante. Os criminosos irritaram-se durante a negociação para a entrega do resgate. Eles queriam que a mulher de Vicente, que mora em Boa Vista, em Roraima, viajasse até a fronteira da Venezuela com a Colômbia, onde receberia instruções para prosseguir numa caminhada de seis horas, até o ponto no qual deveria deixar o dinheiro com um dos sequestradores. Uma vez que as notas fossem contadas, os criminosos libertariam Vicente. A esposa do empresário aceitou os termos dos sequestradores, mas ponderou não ter preparo físico para suportar os rigores dessa caminhada, sugerindo um familiar como portador do resgate. Os bandidos estrilaram. O interlocutor dos sequestradores, identificado como "subcomandante Cristian", disse: "Nós estabelecemos as regras. Não temos problema em ficar um, dois ou três anos com seu marido". E desligou. Nunca mais retornou.
Cristiano Mariz |
VIGÍLIA SEM FIM |
O desespero com o sumiço dos sequestradores levou Marinêz a procurar as autoridades brasileiras. Nas últimas semanas, ela iniciou uma odisseia pela burocracia de Brasília. Marinêz bateu à porta da Polícia Federal, da Interpol, do Itamaraty, dos congressistas de Roraima... Persistente, ela conseguiu falar até com o presidente Lula, numa cerimônia política em Boa Vista, no mês passado. "Vou me empenhar para resolver isso. Se for preciso, conversarei com o Hugo Chávez", prometeu o presidente, repassando o caso para o ministro da Justiça, Tarso Genro, que também estava no evento. Não se sabe se Lula pressionou seu colega venezuelano, sempre tão afável com os terroristas das Farc. Os diplomatas do Itamaraty, no entanto, a quem cabe acompanhar os desdobramentos das investigações na Venezuela, estão apreensivos com o caso. O cônsul do Brasil em Ciudad Guayana, que tem jurisdição sobre a área onde aconteceu o crime, encontrou-se com o chefe da brigada antissequestro da polícia venezuelana, que comanda as buscas pelo brasileiro. Saiu de lá sem respostas. A esposa do empresário não se conforma com a atuação do governo brasileiro: "Todos dizem que vão ligar, fazer e acontecer, mas essas ligações nunca chegam. Ninguém parece se importar. Só porque moramos no fim do mundo somos menos brasileiros? Eu preciso de ajuda, mas ninguém parece disposto a ajudar".
Vicente Aguiar Vieira é um pacato homem de família. Pai de dois filhos, casado há dezenove anos com Marinêz, o empresário prometera chegar a Boa Vista na noite de sexta-feira, 7 de agosto. Vicente compra e vende pedras preciosas. Ele estabeleceu sua base de negócios em Ciudad Bolívar, município venezuelano que pulsa ao sabor dos garimpos da região. São terras violentas, mesmo para os padrões venezuelanos, nas quais sequestros, assaltos e assassinatos constituem uma triste rotina. Naquela sexta-feira, ele aguardava o desfecho de uma venda antes de partir para casa. O último contato de Marinêz com o empresário deu-se no mesmo dia, por telefone. No domingo seguinte, os sequestradores indicaram onde a família encontraria o carro de Vicente, numa ruela de Ciudad Bolívar. Não havia sinais de luta ou sangue – evidências de que ele não reagiu. Para a família, um enorme conforto. Diz Marinêz: "Sinto que ele está vivo, que vai voltar. Sinto isso quando bate a saudade durante a noite, quando ele deveria dizer boa-noite, mas não está aqui".
Pelas informações disponíveis, são consistentes as evidências de que os terroristas das Farc estão por trás do sequestro. Há, contudo, a possibilidade, embora remota, de que criminosos comuns estejam se passando por terroristas, numa tática para enganar a polícia. Nesse perfil se encaixariam tanto ex-paramilitares colombianos quanto ex-combatentes das Farc. Sabe-se que, nos últimos anos, o empenho do governo colombiano em combater esses grupos tem afugentado os criminosos – e muitos deles buscam refúgio na Venezuela, cuja leniência com os narcoguerrilheiros transformou o país num oásis para delinquentes. Essa permissividade, naturalmente, também se aplica aos guerrilheiros que permanecem integrados às Farc. Há relatos confiáveis de que pelo menos quatro comandantes da guerrilha se escondem em terras venezuelanas. Ex-combatentes da organização afirmam que se movimentavam livremente na Venezuela. Sejam quais forem os responsáveis pelo sequestro, cabe às autoridades policiais do companheiro Chávez deslindar o crime e, com alguma sorte e competência, resgatar o empresário com vida. O sequestro do brasileiro resta como prova de que, enquanto houver regimes como os de Hugo Chávez, haverá sobrevida para os terroristas das Farc – e haverá vítimas como Vicente.
Sipa Press |
REFÉNS DA REVOLUÇÃO |
"9-8-2009 Montanhas da Colômbia Querida esposa, encontro-me sequestrado pelas Farc, por isso rogo que me consiga 2,5 milhões para poder gozar de minha liberdade, entregando segundo as ordens e os pedidos que esta organização exija. Pela sua segurança, a minha e a de nossos filhos, suplico-lhe que não informe nenhum amigo ou organismo do estado. Amo vocês. O prazo para a entrega do dinheiro é de quinze dias." O empresário Vicente Aguiar Vieira escreveu esta carta de punho próprio, dois dias depois de ser sequestrado no interior da Venezuela. A esposa dele reconheceu a caligrafia e a assinatura do brasileiro. O tom formal do texto sugere que os sequestradores lhe ditaram o que escrever. Durante as negociações, que se deram por telefone entre a mulher do empresário e os guerrilheiros, esclareceu-se que os 2,5 milhões deveriam ser pagos em bolívares (moeda venezuelana). "Entregar o dinheiro a quem possuir a segunda parte deste bilhete", diz o trecho ao lado. Em seguida, surge um recado do empresário à família: "Amo minha querida e amada esposa e meus filhos. São toda a minha vida. Se for a vontade de Deus, logo estaremos juntos." O que significa: os sequestradores elaboraram uma senha para evitar confusões no pagamento do resgate: metade de uma nota de 10 bolívares foi enviada à família do empresário, e o dinheiro só deveria ser entregue se o sequestrador exibisse a segunda metade da mesma nota.
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