Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 04, 2009

FERREIRA GULLAR Achados e perdidos

FOLHA DE S PAULO


Da janela dava para ver o céu e, certas noites, a lua redonda brilhando sobre minha existência


O PRIMEIRO apartamento em que morei no Rio -ou melhor, na vida- foi na rua Tenente Possolo, esquina de Henrique Valadares, próximo à praça da Cruz Vermelha. Morava de favor, com o amigo Berredo e seu irmão. Quem pagava o aluguel era o pai deles, fazendeiro no Coroatá, interior do Maranhão. Ali morava também um cearense, empregado de um laboratório farmacêutico, que distribuía amostras de remédios em consultórios médicos para conseguir encomendas. Ganhava mal, mas, mesmo assim, numerosas eram as camisas que usava e entregava à lavadeira cada semana. As minhas eu mesmo as lavava. Quando lhe disseram que eu era poeta, riu às gargalhadas.
O apartamento era de sala e quarto. Se alguém trazia mulher para transar, os demais iam para a rua. Transava-se na sala, que era mínima e onde dormíamos eu e o cearense. Berredo fizera amizade com uma garota de programa que morava alguns andares acima do nosso e que, certo dia, tentou suicídio, mas se arrependeu. Ligou para ele, que ligou para mim pedindo que a socorresse. De olhos ainda molhados, abriu a porta e me fez entrar. Havia tomado uma dose forte de remédio e ainda estava atordoada. Conversamos um pouco e ela, agradecida, se despiu e deitou-se nua na cama. Não me fiz de rogado, já que se tratava de salvar uma vida. Ficamos amigos, chamava-me sempre que se sentia só. Mas, pouco depois, decidiu voltar a Minas, donde viera e, como me disse, estava disposta a casar e ter filhos.
O cearense também tinha planos de retornar à sua cidade, no interior do Ceará, mas para se exibir. Alardeava que compraria um carro e, nele, ia entrar buzinando na cidadezinha onde nascera, para espanto e inveja dos antigos colegas. Era mesmo um babaca.
O fato é que, em vez de ele ir ao Ceará, foi um irmão dele, mais jovem, que veio ao Rio e foi morar naquele mesmo apartamento, que já mal cabia nós quatro. Agora éramos cinco e o novo hóspede tinha de dormir num colchão estendido no chão, entre a cama do irmão e a minha.
Foi aí que a coisa encrencou para o meu lado. O cearense queria que eu desse minha cama ao irmão dele e fosse dormir no chão. Não dizia isso claramente, mas insinuava, alegando que ajudava nas despesas e eu não. Fiz-me de desentendido até que ele engrossou comigo e reagi. Quase chegamos às vias de fato, não fora a intervenção do Berredo. A situação tornou-se intolerável, pus minhas poucas roupas e livros na maleta e mudei-me para uma vaga no quarto de uma pensão, a poucas quadras dali. Era a melhor coisa que podia fazer. Agora, da janela da nova residência, dava para ver o céu e, em certas noites, a lua redonda brilhando sobre minha existência.
Berredo e eu continuamos a nos encontrar, já que éramos ambos poetas e a poesia era nosso assunto predileto; ele estudava direito numa faculdade no Catete e eu passava os dias na sala da revista do IAPC, quando não vagabundeava pelas ruas do centro com Lúcio Cardoso ou Décio Victorio. Frequentávamos o Passeio Público e à noite algum boteco da Lapa.
Mas ainda naquele apartamento da Tenente Possolo conheci uma figura especial, que falava pouco, quase apenas ria mostrando um canino de ouro. Não trabalhava mas tinha maneiras próprias de ganhar a vida, sendo a principal delas valer-se do que lhe deixara de herança o irmão escultor. Esse irmão, além de um monumento à Mãe d'Água, deixara alguns bustos e medalhões retratando grandes personalidades da vida nacional, como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco.
O Sá -era esse o seu nome- descobrira naqueles medalhões uma fonte de renda. Mandava copiá-los em gesso e os oferecia em escritórios de advocacia. Um medalhão aqui, outro ali, dava para pagar o aluguel do quarto onde morava na subida de uma favela. Mas o seu sonho de riqueza era vender à prefeitura de São Luís do Maranhão -já que ele e o irmão eram maranhenses- a estátua da Mãe d'Água, obra premiada no Salão Nacional de Belas Artes.
Como a venda dos medalhões ia se tornando cada vez mais difícil, o Sá encontrou outro meio de fazer dinheiro. Observou que as pessoas perdem nas ruas mais coisas do que a gente imagina. "Por exemplo", disse-me ele, "dá para calcular quanta gente passa todos os dias pela avenida Rio Branco? São centenas e centenas, e sempre um deles deixa cair alguma coisa, uma moeda, um brinco, um broche, uma pulseira."
Por isso, ele andava olhando para o chão, à procura do que os outros teriam eventualmente perdido. Razão por que passei a chamá-lo de "o procurador geral".


Zelaya é do tipo que, quando põe uma coisa na cabeça, não tira nunca; aquele chapéu, por exemplo.

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