Livros
O réu supremo
José Saramago revisita a história bíblica de Caim,
que matou o próprio irmão, Abel. Na sua versão,
a culpa do assassinato é de Deus
Jerônimo Teixeira
Martinez de Cripan/Corbis/Latinstock![]() |
PROVA TEOLÓGICA |

Os temas bíblicos já foram explorados por Saramago, com melhor proveito, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro que provocou algum escândalo. Em Caim, é nítido o esforço para alcançar a nota polêmica, erguendo o primeiro fratricida da Bíblia à categoria de herói. Na versão de Saramago, Caim, depois de matar seu irmão Abel, viaja sem destino através do mundo e do tempo. Abraão, Moisés, Jó – vários personagens bíblicos cruzam pela narrativa. No episódio em que Caim acompanha as campanhas militares de Josué pela Terra Santa, Saramago emprega uma linguagem que beira o antissemitismo ("como sempre tem sucedido, à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar"). Diante dos desmandos de Deus (e dos judeus), Caim aparece como uma pobre vítima das circunstâncias. A culpa do fratricídio pertence a Deus, que o induziu ao erro. No final, Caim comete outros, piores crimes (que implicariam nada menos que o fim da humanidade), em um ato de rebeldia contra a tirania divina. No lugar dos ancestrais mitos judaicos, o escritor comunista instaura a antiquada mitologia esquerdista do terrorista heroico. Entre Deus e Stalin, sabemos com quem José Saramago gostaria de compartilhar seu café.