Nos ateliês do centro psiquiátrico de Nise da Silveira, surgiram artistas de talento |
NA ÉPOCA em que Nise da Silveira estudou psiquiatria, os métodos adotados para tratamento da esquizofrenia eram a lobotomia e o choque elétrico. Ela, horrorizada, negou-se a usar esse tipo de tratamento, criando assim um problema para o diretor do Centro Psiquiátrico Nacional, que era seu amigo e não queria demiti-la. Como alternativa, ela optou por dedicar-se a lidar com os pacientes que, como terapia, cuidavam da arrumação dos quartos e limpeza dos banheiros. Foi quando teve a ideia de acrescentar a essas ocupações, outras, como trabalho de encadernação, modelagem, desenho e pintura. Assim nasceram os ateliês e, como resultado deles, o Museu de Imagens do Inconsciente. Naqueles ateliês surgiram alguns artistas de grande talento, cujas obras hoje integram o acervo da arte brasileira.
Essa integração não se deu facilmente, uma vez que a maioria dos críticos de arte e mesmo artistas negavam-se a reconhecer como arte a produção de doentes mentais. O crítico Mário Pedrosa foi o primeiro, entre nós, a defender a legitimidade da expressão daqueles artistas que surgiam, por assim dizer, à margem da história.
A resistência dos que negavam valor artístico àquelas obras decorria do preconceito contra o doente mental e da incompreensão da natureza mesma do trabalho artístico. Custaram a compreender que não era a loucura que fazia daquelas pessoas artistas, e, sim, a vocação, o talento de que nasceram dotadas. Não é a loucura que produz arte, uma vez que das dezenas de pacientes que trabalharam nos ateliês do CPN, no Engenho de Dentro, só uns poucos -cinco- de fato criaram obras de real qualidade estética.
Por outro lado, deve-se entender que o propósito da dra. Nise não era formar artistas, mas, sim, oferecer aos pacientes a possibilidade de se expressar e, desse modo, dar vazão a impulsos e inibições que não encontrariam outro modo de superar. É que, em geral, o doente mental tem dificuldade de se expressar logicamente, como o exige a linguagem verbal. Já a linguagem pictórica, não-verbal, constituída de cores, linhas, símbolos visuais, dispensa o logos para se estruturar. Por essa razão, ao mesmo tempo que serve de vazão aos impasses emocionais, permite-lhe construir uma totalidade simbólica plena, bela, que lhe dá alegria e autoafirmação.
Um exemplo bem evidente disso é o caso de Emygdio de Barros, que, após 23 anos de mudez, encontrou na pintura o caminho para realizar suas potencialidades de artista. Na verdade, não só lhe seria impossível valer-se da fala ou da escrita, como jamais, através delas, conseguiria inventar um espaço imaginário tão rico de significações como o encontramos em seus quadros.
A pintura não o curou mas permitiu-lhe superar o mutismo em que se trancara, a ponto de, certo dia, manifestar o desejo de voltar para casa. E o fez de maneira muito especial, ao dizer a dra. Nise que, naquele Natal, queria como presente um guarda-chuva. Após um primeiro momento de surpresa, ela entendeu que, se queria um guarda-chuva, é que deseja sair do hospital, já que lá dentro não chove.
Mário e Almir Mavignier, temendo que ele parasse de pintar, sugeriram fazer uma exposição de seus quadros, como propósito de vendê-los -e, com o dinheiro, comprar telas, pincéis e tinta. Apenas seis quadros foram vendidos, dos quais cinco foram comprados por Mário Pedrosa -aliás, as únicas vendidas de todas as que foram criadas nos ateliês do CPN, já que o objetivo de dra. Nise era conservá-las como objeto de estudos médicos para a compreensão do fenômeno psíquico que ela designava, adotando uma expressão de Antonin Artaud, como "os inumeráveis estados do ser".
Emygdio foi morar com a família e, pouco depois, parou de pintar, ou porque o dinheiro acabara ou porque a família preferiu gastá-lo em coisa mais útil. Assim, passaram-se alguns anos sem que se tivesse qualquer notícia dele. Enquanto isso, críticos e artistas começaram a reconhecer a qualidade artística das obras criadas nos ateliês do CPN. O Museu de Imagens do Inconsciente ganhou prestígio internacional, e a obra da dra. Nise, o reconhecimento tanto de estudiosos da arte quanto da psiquiatria.
Mas eis que, um belo dia, um senhor de paletó e gravata, com uma maleta na mão, chegou ao hospital do Engenho de Dentro. Era Emygdio de Barros, que voltara para retomar seu trabalho de pintor. E pintou ali até completar 80 anos, quando, por força de lei, teve que ser transferido para um asilo de idosos, onde morreu aos 92 anos de idade.