da Veja
"Não somos educados para escutar o que dizemos.
Como se essa educação devesse ser privilégio do
psicanalista, e não um recurso ao alcance de todos.
O fato é que poucos são capazes de escutar-se,
e essa incapacidade é a maior razão do conflito
entre as pessoas e os povos"
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A vida não é fácil e se torna impossível quando dizemos o que não deve ser dito. Com essa frase, eu poderia ter concluído a resposta dada a uma leitora da minha coluna eletrônica em VEJA.com, que corre o risco de prejudicar gravemente a própria filha por ser incapaz de se conter.
Ela deu à luz aos 16 anos por causa de um escorregão "daqueles que muita gente dá" e assumiu a responsabilidade materna, lutando para sustentar a filha e se ocupando de todos os detalhes da sua vida. Foi pai e mãe, durante mais de uma década. Só que agora, cansada de dar conta sozinha, perdeu a paciência e diz para a menina que ela não faz nada direito e não será nada na vida. Como se não bastasse, nos momentos de raiva, culpa-a pelo fato de ela própria não ter um emprego melhor, acrescentando que abriu mão de tudo para ser mãe. De tanto se sentir culpada, a menina responde que não devia ter nascido.
Não é preciso muito para perceber que essas falas – mortíferas – são uma condenação à infelicidade mútua. A mãe expõe a filha ao desejo do suicídio e a si mesma a uma perda irreparável. Mais comuns do que imaginamos, dão o que pensar sobre o poder da palavra.
Com ela, nasce o amor que move o sol e as estrelas, o doente pode curar-se e o morto segue para outro mundo sem deixar de existir no mundo dos vivos. Com ela, o consolo se torna possível e a dor da perda pode ser superada. A palavra serve para unir, curar, consolar... Mas também para desunir, prejudicar, desesperar... Em Grande Sertão:Veredas, Guimarães Rosa escreveu que viver é perigoso. Se substituirmos "viver" por "falar", teremos uma máxima igualmente verdadeira, pois falar também implica cuidado. Daí a razão pela qual se diz que o silêncio é de ouro.
Mas quem não fala não se liga realmente aos outros. Para encantar, é preciso correr o risco de decepcionar. Para ser aprovado, é preciso expor-se à desaprovação. Portanto, é imperativo falar. Isso significa que só nos resta saber falar, ou seja, não dizer o que não deve ser dito. Só resta a prudência, que, além de necessária, é possível, embora suponha vigilância contínua.
Nós nos fazemos por meio da palavra, e, no entanto, a consciência disso é insuficiente. Porque não somos educados para escutar o que dizemos. Como se essa educação devesse ser privilégio do psicanalista, e não um recurso ao alcance de todos. O fato é que poucos são capazes de escutar-se, e essa incapacidade é a maior razão do conflito entre as pessoas e os povos.
Quem se escuta está mais preparado para fazer bom uso da palavra. Para usá-la como um fio que conecta ao outro, e não como uma espada que separa e mata. A sorte depende menos do que nós possuímos do que do nosso controle, o de que nos tornamos capazes por termos aprendido a escutar o outro e nos escutar.
A psicanalista e escritora Betty Milan assina a coluna Consultório Sentimental em Veja.com. Uma vez por mês, ela publica em VEJA um artigo especialmente escrito para a revista impressas