da Veja
Notícias na TV
"Ô produtor de telejornal, meu semelhante, meu
irmão: de tanto caprichar na reconstituição da
realidade, não estarias criando uma obra de ficção?"
Em Roma como os romanos, na enchente como os molhados. O repórter nunca se contentaria em apenas mostrar as ruas transformadas em rios, os automóveis em jangadas, as casas em aquários. Precipita-se, intrépido, no aguaceiro e, molhado até o joelho, ei-lo, de microfone na mão, a desempenhar sua tarefa não apenas in loco, ao vivo e em cores, mas com os efeitos do dilúvio a castigá-lo na pele. É o jornalismo de imersão na notícia em uma de suas mais completas versões. Melhor, só se o repórter transmitisse do fundo da água. Se se tratasse de um vendaval, o ideal seria que pudesse se mostrar fustigado com tal ferocidade que tivesse de se abraçar a um poste para não alçar voo como uma pipa, o corpo já despregado do solo, os pés flutuando no espaço. À falta disso, pelo menos que se mostrasse com os cabelos ao vento. Sem cabelos ao vento, não há cobertura digna de vendaval. É imperioso escolher para a missão repórteres cujos cabelos sejam passíveis de esvoaçar ao vento. Na enchente como os molhados, na ventania como os ventados.
Agora a notícia é sobre a prisão dos implicados no último escândalo de caixa dois/suborno/desvio de verbas/lavagem de dinheiro/formação de quadrilha e, tanto quanto a polícia, é a TV que vai prender o suspeito. A TV madruga à porta do suspeito. O suspeito abre a porta, sonolento. A TV pespega-lhe as algemas. Ouve-se o clec das algemas se fechando. A TV encaminha o suspeito ao camburão. Força-o à laboriosa empreitada de entrar no carro manobrando o traseiro, dada a impossibilidade de contar com as mãos. O carro parte em disparada. Não basta reportar a realidade. Realidade é para os reality shows. A ordem é radicalizar o real. No próximo bloco: disparam os preços dos legumes – e o que fazer para proteger seu dinheiro em tempos de crise.
Se o réu agora são as leguminosas, vai-se flagrá-las igualmente em seu habitat. A repórter percorre o supermercado, empurrando um carrinho. Pepino – cinquenta por cento de aumento. Ela pega os pepinos da prateleira, põe no carrinho. Abobrinha – setenta por cento; berinjela – cem por cento; rabanete – cento e cinquenta por cento. Nesse momento uma freguesa, com seu carrinho, aproxima-se da repórter. Que freguesa distraída. Não viu que estavam gravando? Não viu as câmeras, não atentou para as luzes? Enquanto a repórter continua a elencar os pepinos e respectivos índices de aumento, a freguesa segue impassível, a escarafunchar as prateleiras, bem ali ao lado, e levar um ou outro produto ao carrinho. A repórter enfim lhe interrompe a rotina. O que a senhora achou dos preços dos legumes? Um escândalo! Estão muito mais altos do que na semana passada. Que sorte a freguesa ter aparecido bem nessa hora. Faltava à notícia o toque de drama doméstico que só a voz do consumidor é capaz de conferir.
Volta para o estúdio. Os âncoras fecham a cara. Estão bravos com o aumento de preços. E o que fazer para proteger o seu dinheiro? A reportagem é agora com um economista, que, compenetrado, surge fazendo cálculos na calculadora. A regra é clara: se a entrevista é com um escritor, tem de ter no fundo uma estante de livros; se com um biólogo, tem de mostrá-lo com um olho pregado no microscópio; se com economista, tem de ter calculadora. E o que fazer, em tempo de crise? Agora sim, ele levanta os olhos da calculadora e dá seu recado. Prudência nos investimentos. Não gastar mais do que se tem. Calcular os juros antes de comprar a prazo. Não comprar a prazo se se pode pagar à vista. (Ô economista! Precisava de tanto cálculo, para chegar a essas conclusões?) No próximo bloco: futebol. E o âncora sorri. É preciso sorrir quando a notícia é de futebol. Assim o público fica avisado de que esse é um assunto ameno.
São mostrados os gols da rodada. Segue-se reportagem sobre os nordestinos que se revelaram exímios fazedores de sushi nos restaurantes japoneses de São Paulo. Começa com a repórter passeando entre as mesas do restaurante. De forma mais espantosa ainda do que a freguesa do supermercado, ninguém parece se dar conta da presença da câmera. Continuam os clientes todos a conversar uns com os outros, entre uma manobra e outra com os hashis. (Ô produtor de telejornal, meu semelhante, meu irmão: de tanto caprichar na realidade, não estarias criando uma obra de ficção?) A repórter chega ao balcão, mostra o moço franzino cortando o salmão com perícia de esgrimista. O moço diz que veio do Piauí e que nunca antes tinha ouvido falar de sushi. Esplêndido: ele diz tudo o que se espera de um piauiense que vira fazedor de sushi. Volta ao estúdio. Os âncoras sorriem. O jornal termina com uma nota alegre e uma história de sucesso, como deve. Boa noite.