Pior para eles, melhor para nós As companhias aéreas têm altos custos e baixas margens
Duas recentes mudanças podem significar uma verdadeira transformação no cenário da aviação brasileira – para melhor. Uma delas diz respeito à liberação do preço das passagens para o exterior, até então regulado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Para se ter uma ideia do efeito da medida, na semana passada alguns bilhetes para Roma ou Londres, vendidos por companhias estrangeiras, estavam 20% mais baratos. A TAM, a única das brasileiras que voa para fora da América do Sul, reagiu reduzindo em torno de 25% o valor de seus pacotes para os Estados Unidos. A segunda mudança teve impacto nas rotas nacionais e se deve, principalmente, ao surgimento no Brasil de uma nova companhia, a Azul, fundada por David Neeleman, o mesmo que criou a americana JetBlue (veja a entrevista). Agressiva, a Azul deflagrou, nos últimos cinco meses, uma acirrada guerra de tarifas. Para fazerem frente à concorrente, a TAM e a Gol, que juntas respondem por quase 90% do setor, passaram a oferecer bilhetes com descontos de até 75%, algo raríssimo. Eles ocorreram justamente naquelas rotas em que a Azul atua – dez, até este momento –, incluindo a viagem entre Campinas, base das operações da Azul, e o Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, este um capítulo à parte nessa disputa. Recém-aberto por decisão da Anac para voos além da ponte aérea, o Santos Dumont atrai as empresas menores, como OceanAir, Webjet e Trip, que, como a Azul, estão cobrando menos para voar. Juntas, elas já somam 11% do mercado, segundo um novo levantamento da Anac – o dobro do que tinham em 2008. Preços liberados e mais empresas na briga apontam para um aumento de concorrência num mercado hoje dominado por um duopólio. É uma ótima notícia para quem viaja de avião. Sempre que a aviação se torna mais competitiva, uma redução nas tarifas ocorre rapidamente. A experiência internacional confirma isso e lança luz sobre o tipo de avanço que resulta de um cenário de maior competição. Depois que o governo americano decidiu liberar o preço das passagens dentro dos Estados Unidos, na década de 70, as tarifas caíram 30%, os voos sem escala cresceram 15% e os atrasos, antes uma praga, diminuíram drasticamente – ganhos que não se perderam, segundo conclui um estudo recente do respeitado National Bureau of Economic Research. É curioso observar que a variação no valor das passagens, que costumava ser ínfima, se tornou significativa. Quem viaja hoje de Boston a Nova York, por exemplo, pode escolher entre dez companhias aéreas e encontrar passagens de 240 a 2 400 reais – uma diferença de dez vezes. Um detalhe relevante: os preços mais altos se referem aos bilhetes da primeira classe. Para efeito de comparação, na ponte aérea Rio de Janeiro-São Paulo, rota atualmente explorada por três empresas, era possível achar, na semana passada, passagens entre 540 e 1 560 reais, uma diferença de três vezes que, definitivamente, não se justifica pelo serviço – sempre o mesmo, não importa o valor que se pague pelos bilhetes. "Para piorar o quadro, a oferta dos voos promocionais é muito mais baixa no Brasil do que nos Estados Unidos", diz Richard Lucht, especialista em negócios da aviação. Diante desse cenário de atraso, cabe indagar quais são as reais chances de se repetir no mercado brasileiro algo como o que se passou nos Estados Unidos e em outros países em que o ambiente na aviação se tornou competitivo. Vale ponderar que o mercado americano chega a ser quinze vezes o tamanho do brasileiro, daí a competição lá ser infinitamente mais acentuada. Além disso, as tarifas dos voos nacionais já são liberadas no Brasil há oito anos, mas isso não se reverteu em preços exatamente baixos. Feitas essas ressalvas, existe um consenso entre os especialistas de que o contexto nunca foi tão favorável para um avanço na aviação brasileira. Basicamente, dois fatores embasam o otimismo: a maciça ampliação do crédito – que facilita a expansão das empresas e abre chances para que mais gente viaje de avião – e a recente consolidação de uma numerosa classe C. São 43 milhões de pessoas que nunca voaram, mas estão ávidas por isso. Avalia o consultor André Castellini, da Bain & Company: "As condições nunca foram tão propícias para um salto de patamar na aviação do país". Fala-se de um avanço necessário. Basta dizer que 30% dos voos que decolaram de aeroportos brasileiros em 2008 o fizeram com atraso. Os voos cancelados foram 5%, três vezes o índice observado nos Estados Unidos, onde a frota é quinze vezes a brasileira. Na ponte aérea Rio-São Paulo, a rota mais movimentada do país, esses problemas se agravam. O preço das passagens chega a ser 300% mais alto que em viagens de mesma distância entre grandes cidades do mundo, segundo um levantamento feito pelo professor Alessandro Oliveira, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). As tarifas promocionais existem, mas não é fácil aproveitá-las. As empresas têm um sistema que se encarrega de avaliar, em tempo real, a procura por um determinado voo. Se ela é alta, o preço sobe. Ou seja: desconto só consegue mesmo o felizardo que comprar o bilhete no instante em que a promoção surgir ou quem vai viajar em dias e horários que ninguém mais quer. Com o programa de milhas, ocorre coisa parecida. As empresas não dizem quantos assentos reservam às milhas. Classificam essa informação como estratégica e a guardam a sete chaves. Mas quem viaja sabe: Milão no verão, nem pensar.
Melhorar a prestação de serviços e cobrar menos pelas passagens torna-se inadiável num cenário mais competitivo – e é um desafio. As empresas precisam preservar suas margens de lucro e, para tal, são forçadas a cortar gastos. A presença da Azul tende a complicar ainda mais o quadro por uma razão: ela tem dinheiro para investir e não está sob a pressão do lucro. "Se a Azul estivesse na liderança, não seria tão generosa nos preços. É uma estratégia de quem está atrás", diz José Efromovich, diretor-geral da OceanAir, que tenta ir no mesmo caminho. Na TAM, que ocupa a dianteira, o presidente David Barioni reconhece estar debruçado sobre uma equação difícil: "Só podemos baixar os preços e investir em serviço se cortamos gastos – do contrário, o negócio se inviabiliza". Há duas semanas, a TAM demitiu 21 executivos, depois de ter cancelado a mudança de endereço de sua sede. Para se adequar à liberação das passagens internacionais, o esforço terá de ser redobrado. Sem a antiga proteção, a empresa passará a competir com gigantes estrangeiros que cobram até 40% menos do que ela pelo mesmo voo. A Gol também está se mexendo. Duas semanas atrás, anunciou a emissão de títulos de sua dívida para capitalizar-se. Ainda está sob o impacto da aquisição da Varig, que explica grande parte do prejuízo de 1,3 bilhão de reais acumulado pela Gol em 2008. "Este é o ano dos passageiros, e não das empresas", resume o presidente da Gol, Constantino Junior. Boa notícia. A lógica no Brasil costuma ser inversa. Sempre que uma nova empresa aparece na aviação brasileira, recai sobre ela a desconfiança de que não vai vingar. Existe no Brasil algo a que o mercado se refere como a "maldição do terceiro lugar". Nos últimos oito anos, quatro empresas que estavam nessa posição desapareceram, uma após a outra – TransBrasil, Varig, Vasp e BRA. Atualmente, quem está em terceiro é a Webjet, com exíguos 3,7% do mercado. Pouco atrás, a OceanAir, que surgiu em 2002 com a meta de dominar 15% do setor e patina hoje em 3%. "Não é fácil para uma empresa pequena fazer frente à escala das grandes. Foi preciso cortar muitos custos e reformular nosso negócio para torná-lo possível", conta José Efromovich, da OceanAir. Por tudo isso, é bem razoável refletir sobre as chances de a Azul prosperar. "Só vai conseguir isso no Brasil quem oferecer algo realmente novo no mercado", diz Victor Mizusaki, analista da Itaú Corretora. É essa a tentativa da Azul. Seu modelo se pretende semelhante ao de empresas low cost. A ideia é fazer voos diretos entre cidades médias, incluindo as capitais, aonde hoje se chega apenas depois de muita escala. E vender passagens baratas, meta viável diante dos custos fixos bem mais baixos da Azul – atribuídos, em grande medida, aos jatos da Embraer, menores e algo como 30% mais econômicos. Não será fácil lucrar nas rotas menos movimentadas, como ambiciona Neeleman. "Sempre aparece alguém anunciando que vai voar para cidades menores e acaba no Santos Dumont", alfineta Barioni. Aconteceu com a própria Azul. Prosperar na aviação não é fácil em lugar nenhum do mundo – situação que se agravou significativamente com a atual crise financeira. No Brasil, o crescimento do número de passageiros, que vinha ao ritmo de 10% ao ano, caiu para 2%. Somando-se a isso, as empresas brasileiras se prejudicaram com a alta do dólar, uma vez que 65% de seus custos são calculados na moeda. Num setor de margens já baixas – em bons anos elas giram em torno de 3%, um terço das alcançadas no setor imobiliário em plena crise –, elas ficaram ainda mais espremidas, quando não negativas. No Brasil, restam alguns complicadores adicionais, como impostos 30% mais altos que nos países desenvolvidos, legislação trabalhista engessada e a infraestrutura maltratada dos aeroportos, que estão sob o comando da Infraero, órgão que tenta hoje deixar de ser um cabide de empregos para apadrinhados políticos para se tornar mais técnico. Isso é necessário sob todos os aspectos. Do ponto de vista dos negócios, se o número de brasileiros que viaja de avião triplicar nos próximos vinte anos, como previsto, faltarão aeroportos. Espera-se que até lá, no entanto, a aviação brasileira já tenha resolvido esse e outros nós.
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