FOLHA DE S. PAULO
Pacto luliano de estabilidade econômica e dependência da China anestesiam o país e dificultam mudança maior
É MAIS DIFÍCIL isolar um Banco Central de pressões políticas de origem popular em democracias pobres. Altas de juros degradam as condições de vida, o que pode suscitar protesto político. Em economias mais arrumadas, o impacto do aperto monetário pode ser menor. Menor ainda se houver um amortecedor, um colchão social.
Programas de transferências sociais de renda, muito incrementados no governo Lula, providenciaram tal colchão. Assim, de certo modo e talvez inadvertidamente, comprou-se o relativo isolamento do BC, também chamado de autonomia.
Note-se que políticas dessa natureza eram recomendações do esquecido "Consenso de Washington", o decálogo do "perfeito idiota neoliberal", diriam petistas, que hoje comem nesse prato em que cuspiam.
Há decerto mortos, feridos, queixas teóricas e a crítica da indústria, por exemplo. Mas esse caldo não engrossa "nas bases" e, assim, não induz políticos com poder de decisão ou pressão a intervir de modo significativo na ilha tecnocrática do BC. Ou no grosso da política econômica.
Este é só um aspecto do pacto de estabilidade luliano. Lula logrou ainda tanto reduzir a dívida pública (fez superávits fiscais primários suficientes) como elevar a despesa do governo, em parte destinada à compra do colchão social. A alta do gasto público, do consumo privado e até do investimento não acabou em inflação e/ou déficit externo desagradáveis ou em suspeitas a respeito da solvência externa do país devido: a) ao crescimento sino-asiático, que incrementou nossas exportações; b) à política de redução da dívida externa e/ou acumulação de reservas.
O "modo de produção asiático", digamos, com seus trabalhadores mal pagos, ainda barateou bens de consumo pelo mundo e por aqui. Juros baixos e a louca expansão do crédito mundial também ajudaram. O conjunto dessa obra (a atitude do BC "alemão" do Brasil, a alta das commodities e o capital sobrante no mundo) valorizou o real, o que significou um aumento adicional do poder de compra da população.
Então chegamos a meados de 2008, quando o BC elevava os juros devido ao excesso no gozo dessa dita bonança. Haveria então redução no crescimento, menor talvez que a hoje imposta pela crise. Como nem a recessão tem suscitado revolta, menos ainda o faria a contenção do PIB ditada pelos juros. Mas não foi possível testar a retomada do "business as usual" no Brasil, pois veio a crise.
A despiora na economia mundial, porém, criou uma situação que replica, de modo caricato, os dias finais do período de bonança de 2008, de alta especulação. Há discreta melhora na China.
Cai o medo de novo desastre financeiro (há "apetite por risco"). Há excesso de dinheiro barato (juro zero no mundo rico), mas EUA e cia. não consomem. O tsunami de dinheiro então sobrante derruba o dólar, encarece o real, infla commodities: desembestam os capitais à procura de rentabilidade.
Não se sabe se tal bolhinha vai estourar. Mas o resumo da ópera é que o Brasil segue flutuando nessas marés, anestesiado pelo pacto luliano e pela dependência da China. Mudar tal situação (e pois a "armadilha cambial") implica mudar um pacto político interno e a relação com o resto do mundo. Nada simples.