Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 04, 2012

Capital e trabalho unidos - GAUDÊNCIO TORQUATO

O Estado de S.Paulo - 04/03/12


Em 10 de fevereiro de 1979, Luiz Inácio, o sindicalista, ao contemplar
a galera nas arquibancadas e gerais do Estádio do Morumbi, teve um
estalo: fazer uma assembleia-geral de trabalhadores num campo de
futebol. Assistia, ao lado de companheiros, a uma partida entre
Corinthians e Ponte Preta pelo Campeonato Paulista - 2 x 0 para o
Timão.

Março do mesmo ano, 80 mil metalúrgicos em greve acorreram ao gramado
do Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, para ouvir o
líder, sem microfone, gritar refrãos que a massa repetia. Os
trabalhadores queriam 34,1% de aumento para repor as perdas salariais.
Velhos e doloridos tempos.

Surfando nas ondas de sofrimento e alegria proporcionadas pelo seu
time do coração, e depois de décadas de tenaz esforço para organizar o
movimento sindical e ingressar no caminho da política, Lula alcançou
os píncaros da glória. Galgou ao mais alto posto da Nação, o de
presidente da República, de onde se retirou, após oito anos, sob o
reconhecimento de que seu governo acelerou a dinâmica social e deu
rumo seguro à economia. Novos tempos.

A folhinha registra fevereiro de 2012. Atento ao cenário
institucional, o ex-presidente fez a conta: entre o fevereiro de ontem
e o de hoje, 33 anos se passaram.

Por que esse registro, cheio de simbolismos?

Porque na imponente sede da Avenida Paulista que abriga a Fiesp, onde
Lula começou a praticar as artes da locução e da negociação, as
maiores centrais sindicais - entre elas a CUT, entidade que criou para
ser o braço sindical do seu partido, o PT - e empresários dos mais
diversos segmentos da indústria praticaram, na semana passada, uma
liturgia em nada semelhante à que ele comandava em tempos idos. Ali,
representantes de trabalhadores e patrões exercitaram um ritual
entoando o mantra: "Nesta causa, estamos unidos; todos por um, um por
todos". O jogo da união momentânea - até porque seria ingênuo supor
que as peças daquele tabuleiro nunca mais litigarão - tem nome:
desindustrialização. Que se traduz pela perda relativa do emprego e do
valor adicionado da indústria. Fundamentos explicam-na, entre eles o
forte crescimento da produtividade no setor industrial em comparação
com os demais, fator que acarreta queda nos preços das manufaturas e a
consequente redução da participação da indústria no valor agregado e
no emprego total.

O estiolamento das cadeias produtivas ocorre desde a década de 90, na
esteira da política macroeconômica. De lá para cá milhares de postos
de trabalho foram fechados por aqui. O painel não deixa dúvidas: se a
indústria manufatureira registrava participação no PIB de 27,2% em
1985, esse índice despencou para 15,8% em 2010. A queda do emprego na
indústria entre setembro de 1985 e setembro de 2010 foi de 28%, já a
participação dos manufaturados na pauta de exportações baixou de 55%
em 2005 para 39,4% em 2010. O rosário de lembranças registra um
passado em que a pauta de exportações abrigava aviões, automóveis,
confecções, aparelhos, etc. Hoje tais itens são marginais. Mas a pauta
de importações engorda a olhos vistos. Em 2003 o coeficiente de
importação era de 12,5%; no segundo trimestre do ano passado, 22,9%.

Não por acaso, Paulo Skaf, o anfitrião do encontro de trabalhadores e
empresários na Fiesp, pinçou, no meio das estatísticas, o dado que
calou fundo: de cada quatro produtos consumidos hoje no País, um é
importado. Fechando o pacote de perdas, o presidente do Grupo
Marcopolo, a maior fabricante brasileira de carroceria de ônibus, José
Antônio Fernandes Martins, fez o desabafo: "Meu custo de produção na
Índia é de R$ 14 por hora; no Brasil, R$ 52". Conclusão: o Brasil
apresenta-se como a alternativa menos confortável entre os sete países
que abrigam o grupo, fruto dos males que afligem a indústria:
concorrência predatória de outros países, câmbio flutuante, alta taxa
de juros, pesada carga tributária e logística "podre". A peroração,
recheada de mágoas e decepção com o governo, ganhou força com os
adjetivos das centrais sindicais, que acenam com a mobilização de
massas nos Estados até o mês de maio.

O que esperam o capital e o trabalho depois da missa pela integração
de propósitos? Que o governo encontre mecanismos para fazer face ao
esvaziamento das fábricas, permitir às empresas enfrentar o tsunami
das importações e incentivar a política de exportação de manufaturas.
Talvez por não ter o que oferecer, o ministro do Desenvolvimento,
Fernando Pimentel, decidiu não comparecer ao conclave. Seria tarefa
complexa comprometer-se com ajustes na política que se adota há duas
décadas, centrada na taxa de câmbio sobrevalorizada, que reduz
drasticamente as exportações de manufaturados e propicia intenso
processo de substituição de produtos domésticos por importados.

O fato é que qualquer mexida no caldo econômico não pode deixar de
considerar a moldura das economias contemporâneas, sob a qual se
expandem fenômenos como a internacionalização das redes produtivas, a
mudança na forma de gestão das empresas, a expansão do sindicalismo de
classes médias, o fortalecimento do agronegócio ou a nova divisão
internacional do trabalho. O painel industrial mudou: tradicionais
polos de produção se esvaziam, enfraquecendo cadeias como as de
siderurgia, a têxtil, de vestuário, de estaleiros, etc.

O fecho da história de arrefecimento da indústria mostra as curvas do
tempo. A classe trabalhadora ganhou impulso na expansão do chão de
fábrica. Agora definha pelo estreitamento das plantas industriais. A
greve era, outrora, a arma dos trabalhadores para abrir negociações.
Hoje trabalhadores procuram empresários para dialogar. Ontem a turba
desfilava na Paulista apontando seu aríete contra a pirâmide da
indústria, a Fiesp. Hoje centrais sindicais fazem passeata de mãos
dadas com os industriais. Antigos adversários se unem. Cena incrível,
porém verdadeira. Capital e trabalho comendo no mesmo prato.

Arquivo do blog