Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 20, 2012

A liberdade é temerária e perigosa Rodrigo Constantino

O Globo - 20/03/2012


Prezados burocratas iluminados da Anvisa, quem vos fala é o
representante da ANTA (Associação Nacional de Tutela dos
Abestalhados). Venho expressar nosso apoio às recentes medidas
adotadas pela Anvisa, sempre em prol da proteção dos indivíduos.
Sabemos como a liberdade é algo temerário e perigoso.

O ex-presidente estadunidense Reagan costumava dizer que o governo
existe para nos proteger de terceiros, e ultrapassa seus limites
quando tenta nos proteger de nós mesmos. Mas o que sabia este ator? Só
porque foi um dos responsáveis pela queda do Muro de Berlim não quer
dizer que ele saiba melhor que vós o papel adequado do governo. O
sucesso de suas reformas liberais tampouco comprova alguma coisa.

Nós, da ANTA, sabemos como o indivíduo, quando exerce a liberdade de
escolha, acaba escolhendo errado. Menos no momento da eleição. Neste
caso isolado, uma luz divina costuma cair sobre as urnas, e mesmo (ou
principalmente) os abobados acabam acertando. Bastou sair dali,
entretanto, e a estupidez retorna com tudo, demandando vosso sapiente
controle para protegê-los.

Exemplos não faltam. Onde já se viu alguém, por livre e espontânea
vontade, fazer bronzeamento artificial? É arriscado demais! É verdade
que o próprio sol pode causar câncer de pele. Também é verdade que nem
todos usam a proteção solar adequada. Mas a Anvisa faz sua parte, não
é mesmo? Se poder tivesse, a Anvisa até tamparia o sol. Todos ficariam
mais seguros.

O que dizer dos remédios? Sabemos como brasileiro gosta de se
automedicar. O brasileiro é tão ousado que é capaz de comprar até
aspirina sem receita! Permitir que as farmácias coloquem à disposição
dos clientes tais produtos seria irresponsável. É preciso dificultar a
venda, colocando tudo atrás do balcão e exigindo mais farmacêuticos de
plantão para avaliar cada minúsculo pedido.

E nada de unir farmácia com loja de conveniência, como fazem nos EUA.
A pessoa quer comprar um sorvete e acaba saindo de lá com um
antibiótico tarja preta! Banir remédios de emagrecimento também foi
uma jogada de mestre. Alegam que alguns casos necessitam deste
tratamento. Mas o que sabem os médicos?

Agora mesmo a Anvisa deu mais um grande passo na direção da saúde
popular perfeita, ao proibir os cigarros com sabor. Qualquer um sabe
que aqueles cigarros mentolados são a porta de entrada para os jovens
no satânico tabagismo. O que? As estatísticas negam que há mais
fumantes em países onde é permitido este tipo de cigarro? Não importa.
Ainda assim é importante proteger o fumante de si mesmo. O governo não
protegeria um suicida?

Dizem que os fumantes vão acabar comprando cigarros vagabundos no
contrabando, mas aí já não é mais problema da Anvisa.

Mas aqui cabe uma crítica. A Anvisa foi tímida demais! Não basta banir
o sabor. É preciso impor um sabor podre. Somente assim eles param de
fumar e a saúde coletiva pode avançar. Escuto alguém afirmar que os
nazistas tinham esta meta também, da higienização do povo. E daí? Nem
tudo aquilo que Hitler queria era absurdo, não é mesmo? E não há
ligação alguma entre tais metas ambiciosas e o regime totalitário que
se seguiu, há?

Muitos são os que aplaudem vossas medidas, saibam disso. Temos sólidos
argumentos. Por exemplo: a saúde universal paga pelo estado. Eis como
vai a lógica: se todos pagam impostos para manter o SUS, então claro
que é legítimo o governo cuidar da nossa saúde. Dando continuidade a
esta lógica impecável, nós da ANTA achamos que o governo deveria impor
exercícios físicos diários, pois o ócio é prejudicial à saúde. Cortar
o sal, o açúcar, a fritura e a gordura parece o caminho natural a
seguir.

Aproveitamos para sugerir outra medida, mas em voz baixa, pois é mais
polêmica. Sabemos que os ungidos da Anvisa reconhecem que a saúde do
corpo não é tudo que importa. A saúde da mente também é fundamental. E
não podemos permitir que cada um escolha livremente o que ler. Um
controle social da imprensa se faz urgente.

O Partido da Imprensa Golpista (PIG) chama isso de censura, mas não
tem nada a ver. É apenas o governo clarividente e altruísta cuidando
do povo, protegendo os súditos, digo, cidadãos, deles mesmos.

E para quem apresentar sinais de ansiedade com estas mudanças todas,
basta o governo fornecer gratuitamente antidepressivos. Todos ficarão
felizes.

Portanto, camaradas da Anvisa, sigam em frente com vossa luta pelo bem
geral. E não liguem para aqueles poucos que vos acusam de fascistas. O
povo deseja vossa tutela. A liberdade é um luxo desnecessário quando a
saúde social está em jogo.

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