Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 11, 2012

A experiência brasileira - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 11/03/12

Quando em 1988 foi promulgada a "Constituição-Cidadã", assim chamada
pelo presidente da Constituinte deputado Ulysses Guimarães, do PMDB, o
então presidente José Sarney disse que ela tornaria o país
"ingovernável".
Durante muitos anos seus críticos - que já foram majoritários - diziam
que a Constituição tinha muitos direitos e poucos deveres. Hoje, quase
um quarto de século depois, a Constituição brasileira mostra-se
adequada às necessidades dos tempos modernos ao mesmo tempo em que a
enxuta e quase sem emendas Constituição dos Estados Unidos de 1787 já
não serve como parâmetro para o mundo, de acordo com um estudo dos
professores americanos David Law, da Universidade Washington em St.
Louis, e Mila Versteeg, da Universidade de Virgínia.
O constitucionalista Luís Roberto Barroso acha que a Constituição
brasileira é, provavelmente, o exemplo típico de Constituição voltada
para a proteção ampla dos direitos fundamentais, inclusive os sociais
e difusos, como parece ser a tendência internacional.
Tal ênfase é compreensível, diz Barroso, pois o déficit em relação à
proteção e promoção dos direitos fundamentais era a marca da
experiência política brasileira.
Embora ressalte que nem tudo tenha sido flores nesse período desde sua
aprovação, ele acha que é possível fazer um balanço extremamente
positivo do seu desempenho.
Para Luís Roberto Barroso, a Constituição brasileira de 1988 tem
algumas virtudes e realizações que permitem identificá-la como um
documento de grande sucesso institucional.
Dentre elas, destaca: (i) transição bem sucedida de um regime
autoritário para um regime democrático; (ii) mais de duas décadas de
estabilidade política, período no qual ela se mostrou capaz de
absorver crises políticas que foram do impeachment de um presidente à
crise do chamado mensalão; (iii) razoável avanço na proteção e
promoção dos direitos fundamentais de uma maneira geral.
Por outro lado, Barroso considera que a Constituição, na sua
formulação originária - e, de certa forma, ainda hoje - apresenta dois
vícios que tornaram a vida mais difícil: trata de assuntos demais e
trata-os com excessivo detalhamento.
"Uma Carta que, mais do que analítica, é prolixa, casuística e corporativista".
Barroso diz que é possível chegar a duas constatações positivas: a
Constituição foi remendada por mais de 60 emendas, mas questões
materialmente constitucionais - direitos fundamentais, separação de
Poderes e divisão de competências entre União, Estados e Municípios -
permaneceram substancialmente intangidas desde 1988.
A atuação do Judiciário na interpretação construtiva da Constituição
tem-na ajudado a servir bem ao país. Barroso ressalta que a
Constituição brasileira tem uma característica que a diferencia das
mais tradicionais, como a norte-americana e a alemã, que é a previsão
de um conjunto substancioso de direitos sociais, aí incluídos os
relativos a educação, saúde e assistência social.
"Apesar de criticada por isso, se a Constituição de um país pobre e em
vertiginoso esforço para sair do subdesenvolvimento não cuidasse de
temas como esse, ela se transformaria apenas em um conjunto de regras
para a classe dominante se alternar no poder", diz Barroso.
Outra inovação da Constituição brasileira, em contraste com textos
tradicionais, foi o tratamento de temas como proteção do meio ambiente
e do consumidor, os chamados direitos difusos.
A partir daí, na visão de Luís Roberto Barroso, tem-se desenvolvido,
paulatinamente, uma nova consciência de direitos, por parte da
cidadania, e de responsabilidade social, por parte dos empreendedores.
O professor Gustavo Binenbojm diz que no caso da Constituição de 1988,
embora presentes traços herdados do constitucionalismo americano, como
o sistema federativo e o controle difuso de constitucionalidade, suas
influências diretas foram a Constituição portuguesa de 1976 e a Lei
Fundamental de Bonn, de 1949, hoje Constituição da Alemanha
reunificada.
"Talvez a maior proximidade em termos de cultura jurídica - a
romano-germânica - e a experiência comum com regimes totalitários - o
hitlerista e o salazarista - tenham oferecido modelos constitucionais
mais próximos de nossas necessidades e preocupações, em especial no
que concerne à garantia da estabilidade democrática e à proteção dos
direitos fundamentais", especula.
A tendência mundial, diz Binenbojm, é os mais jovens "scholars"
passarem a se interessar pela jurisprudência de tribunais
constitucionais de países emergentes, dentro os quais se destacam a
África do Sul, a Colômbia, a Índia e o Brasil, apesar da barreira da
língua.
Gustavo Binenbojm também destaca que países como Brasil e Índia, onde
as Constituições acabam por se tornarem documentos que incorporam
muitas questões próprias da legislação ordinária, são levados a uma
constitucionalização excessiva e, por conseguinte, a uma excessiva
judicialização da política, da economia e da vida social de forma mais
geral.
Os dois constitucionalistas têm a mesma visão sobre a importância da
teoria constitucional dos Estados Unidos, apesar de todas as mudanças
ocorridas no mundo. Luís Roberto Barroso não tem dúvidas em afirmar
que "a teoria constitucional americana ainda reina".
Mesmo que a Constituição americana de fato já não seja um modelo
amplamente seguido e que a Suprema Corte americana de fato já não
tenha a influência de outros tempos, ele diz que a doutrina
constitucional americana - isto é, os principais autores de
universidades como Yale, Harvard, Stanford, NYU - continua, de longe,
a mais influente do mundo, por sua qualidade, sutileza e sofisticação,
seguida, a meia distância, pela doutrina alemã.
Também Gustavo Binenbojm diz que "seria um erro subestimar a
importância do constitucionalismo norte-americano, ainda nos dias de
hoje, para a cultura política e jurídica universal, inclusive a
brasileira".
As contribuições do constitucionalismo norte-americano transcendem em
muito a letra expressa de sua Constituição, registra Binenbojm.
Para ele, "o longo e contínuo experimento democrático-constitucional
estadunidense produziu uma forma peculiar de cultura política que crê
na razão pública como instrumento de construção da justiça".
Passados mais de 200 anos, a despeito de alguns percalços, Gustavo
Binenbojm reconhece que "a jurisdição constitucional fomentou o
surgimento e desenvolvimento de um discurso público centrado em
princípios de moralidade política, para além das meras disputas de poder”.

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