Os últimos dias trouxeram notícias terríveis sobre a ética pública.
Notamos uma radicalização das teses sobre o aborto e o infanticídio
praticado contra seres vistos como anormais ou monstruosos. No fundo
de tais propostas temos a sempiterna eugenia, ideia arcaica já
presente em Platão e defendida por todas as formas tirânicas de poder,
antigas e modernas.
O símile usado por Platão é brutal, mas serve até hoje aos depuradores
do mundo: existem raças de cachorros e pássaros, nas quais surgem
indivíduos ótimos ou péssimos. Naturalmente, os reprodutores devem ser
apenas os melhores e os mais jovens. Usando cachorros, gatos,
pássaros, cavalos, Platão explica o caso humano, sendo o mundo das
bestas amestradas um símile a seguir na cria dos melhores.
Como chegar à excelência na gênese dos seres? Os governantes devem
imitar os médicos que usam remédios ousados. O fármaco exato
encontra-se na eugenia. "É preciso que a elite dos homens se una com
mais frequência à elite das mulheres e, com menor intensidade, que os
piores dentre os homens se unam às piores mulheres. Os filhos dos
primeiros devem ser criados, não os dos segundos, se desejamos que o
rebanho mantenha sua qualidade eminente." Até aqui, o rebaixamento dos
governados à condição bestial, algo que foi transmitido a todos os
governantes assassinos do Ocidente.
A seguir vem o pior no "remédio" platônico: "Todas as disposições
relativas a tal procedimento devem ser ignoradas pela maioria das
pessoas, salvo pelos magistrados". Preste atenção à frase, leitor
idôneo. O hábito, ao discutir esse trecho de A República, é nos
fixarmos no "remédio", o infanticídio. Mas a maneira de aplicar tal
medida é o segredo, técnica que gerou a razão de Estado e a censura,
cujo ápice se encontra no totalitarismo, nazista ou stalinista.
Eric Voegelin indica o quanto é assustadora a prática recomendada por
Platão, segundo a qual os magistrados garantem o sigilo do governo.
"Em abril de 1941, todos os procuradores de Justiça chefes e os
presidentes das Cortes de Apelação tinham declarado seu apoio ao
programa da eutanásia (...) o secretário de Estado do Ministério da
Justiça, dr. Franz Schlegelberger, fez uma preleção (...) em que
declarou que a ação 'T 4' era legal. Nenhum dos mais de cem membros
mais antigos, entre os quais estava o presidente da Suprema Corte,
Erwin Bumke, apresentou objeções. Os pormenores da campanha 'T 4'
(...) foram submetidos aos juristas. Explicou-se mais tarde que Hitler
não queria uma lei para as medidas de eutanásia, mas que elas
continuariam com fundamento em seu decreto legal pessoal. A campanha,
notificados os juristas, foi executada como 'segredo do Reich'" (E.
Voegelin: Hitler e os Alemães).
Sobre a 'T4', falemos do lugar secreto: Tiergartenstrasse 4 (Rua do
Jardim Zoológico), prédio onde as atrocidades eugênicas foram
cometidas, no apuro do rebanho. Bem platônico o ambiente, basta reler
A República (livro 5, 459). Naquele e noutros edifícios seriam
destruídos os "piores" em prol dos "melhores". Os primeiros seriam
judeus, ciganos, alemães incuráveis. Assim, milhares de pessoas foram
assassinadas, pela fome e por remédios. A 'T 4' foi o prelúdio do
Holocausto. Ela começou em 1939, quando Hitler mandou seu médico
pessoal, Karl Brandt, avaliar o pedido de certa família para dar
"morte piedosa" ao filho, defeituoso físico e mental. O ato bondoso
ocorreu em julho de 1939. Platão recomendava seu "remédio" para o bem
dos governados. A nobre mentira repete-se em todos os lábios
assassinos, filosóficos ou não.
Parte do mundo vive em regime democrático. Nele o segredo dos Poderes
é atenuado pela imprensa. Mas subsistem mitos eugênicos. As pesquisas
médicas, de engenharia e genética podem seguir (não é algo definido na
essência do saber científico) a renitente história do
"aperfeiçoamento". É possível tomar vias diversas, na ética e na
ciência, pois esta última não se destina apenas à tarefa que
frutificou na eugenia. Mas o nazismo está vivo e o veneno antissemita
foi propagado de mil modos. É preciso cautela diante de doutrinadores
que preparam massacres.
Ao ler um panfleto, exposto como "artigo científico" no Journal of
Medical Ethics, ficamos pasmos. Após os escritos de Alfred Rosenberg e
similares, jamais foi impresso algo tão frio e tão pleno de
charlatanismo como o texto de Alberto Giubilini e Francesca Minerva,
professores de Filosofia em Milão e Melbourne, After-birth abortion:
why should the baby live? (Aborto pós-nascimento: por que o bebê
deveria viver?). Dizem eles que o feto e o recém-nascido são
"moralmente equivalentes" porque são "apenas" potencialmente pessoas.
Aristóteles é pilhado e sua filosofia serve, com a ideia de potência e
ato (o homem é o ato para o qual tende o infante) como instrumento
para racionalizar o infanticídio. A potência supõe uma perfeição final
que ninguém, nem mesmo os sofistas da ética, pode prever quando
ocorrerá. Entes de 1, 2, 20 anos podem ser eliminados, seguindo as
premissas dos autores.
No Brasil as propostas de crimes são feitas sob a capa de
"progressismo" e "liberdade de escolha". Surgem doutas desculpas
jurídicas em comissões oficiais, que aventam a incapacidade de manter
um filho para permitir o aborto. Logo, o Estado não poderá, seguindo a
mesma lógica, sustentar seres indesejados, sobretudo se "monstruosos"
(discuti o ponto em meu livro Moral e Ciência, a Monstruosidade no
Século 18). Graças à democracia, tais receitas letais são parcialmente
conhecidas pela opinião pública. O perigo é eminente, no entanto. Uma
diminuta censura contra a liberdade de imprensa e todas as permissões
serão concedidas aos assassinos disfarçados de políticos, filósofos,
juristas, psicólogos ou médicos. Eles agirão, seguindo o ensino
platônico, em segredo. Quem tiver consciência grite, para depois não
se espojar na lama dos rebanhos.