Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 04, 2012

Poesia é ouro sem valia - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 04/03/12


Com a poesia é assim mesmo. Não só por vender pouco, o poeta sabe que
não escreve para vender.

De quando em vez, vem um poeta jovem me pedir que lhe consiga uma
editora para publicar seu livro de estreia. Só estando com a cabeça na
lua para pretender uma coisa dessas.

Para consolá-lo costumo citar o exemplo de poetas, hoje consagrados,
que tiveram que publicar seu primeiro livro a sua própria custa. Mas
tem que ser assim mesmo, já que livro de poesia vende pouco e de poeta
desconhecido não vende nada. Nenhum editor, em seu juízo perfeito,
entra numa fria dessas.

Lembrei-me disso ao escrever um texto sobre Manuel Bandeira e mais uma
vez deparei-me com o assunto. A edição de seu primeiro livro de poemas
"A Cinza das Horas", foi paga por ele; a do segundo, "Carnaval", a
mesma coisa. Só vários anos depois, teve um livro lançado por uma
editora.

E Carlos Drummond de Andrade? Seu primeiro livro, "Alguma Poesia",
apareceu como lançado pelas Edições Pindorama, que não existia, por
ter sido, na verdade, impresso na Imprensa Oficial do Estado de Minas
Gerais e pago pelo poeta em suaves prestações, descontadas de seu
salário.

O segundo livro, "Brejo das Almas", saiu por uma cooperativa; o
terceiro, "Sentimento do Mundo", ele pagou de seu bolso e distribuiu
toda a edição (150 exemplares) entre amigos e escritores. Só o quarto
livro -aos 40 anos de idade- foi lançado por uma editora, a José
Olympio, que passou a editá-lo.

Mas estes são apenas uns poucos exemplos, entre os quais poderia
incluir-me, pois não teria editado meu primeiro livro se não fosse a
ajuda de minha mãe. O segundo livro, paguei-o de meu bolso. Só tive um
livro de poemas lançado por uma editora - que faliu em seguida - 13
anos após minha estreia. Acolhido por uma editora importante, somente
30 anos depois.

Com a poesia é assim mesmo. E não só por vender pouco; também porque,
no fundo, o poeta sabe que não escreve para vender. Lembro-me que eu
mesmo diagramei "A Luta Corporal", um livro tão fora das normas que
provocou um atrito com a gráfica que o imprimiu.

É que poeta não quer apenas escrever os poemas; quer fazer o livro
mesmo. Poeta gosta de fazer livros. Por exemplo, João Cabral, quando
estava em Barcelona, comprou uma pequena gráfica artesanal em que
editou "Psicologia da Composição" mas também livros de outros poetas
brasileiros e espanhóis.

Exemplos não faltam. Décio

Victorio, os poucos livros que publicou, ele mesmo os diagramou,
escolheu o tipo de letra, o papel, o tamanho, tudo, e pagou uma
gráfica para compô-los e imprimi-los. Quando tomei a iniciativa de
conseguir uma editora que lançasse seus livros, rejeitou.

Outro exemplo é Cláudia

Ahimsa. Ela bolou todos os seus livros, buscou uma gráfica, pagou e os
editou. No último deles, então, "A Vida Agarrada", até a capa foi
criação sua, capa que já é, por si só, uma obra de arte: ela se fez
fotografar sem a cabeça, num vestido que parece ao mesmo tempo renda e
rede de pescar, com vários caranguejos vivos, presos a ele. Para
completar, os seus braços, que parecem metidos em luvas, estão na
verdade pintados de azul cobalto.

Não se pode esquecer, além do mais, que as novas tecnologias favorecem
essa mania dos poetas de produzirem não apenas os poemas mas também os
livros.

Foi o caso da Geração Mimeógrafo que, como o próprio nome diz, nasceu
com o mimeógrafo e se valeu dele para fazer seus livros. Neste caso,
juntaram-se alguns fatores que lhe imprimiram um caráter próprio: a
redescoberta do poema-piada de Oswald de Andrade, que inspiraria
poetas como Leminski e Chacal. Eles o usaram como um modo de reagir à
censura imposta às artes pelo regime militar.

É verdade que a censura prévia -que vinha restringindo a atividade do
teatro, do cinema e da música- os milicos não conseguiram impor ao
livro, graças à pronta reação de Jorge Amado e Erico Verissimo, que
ameaçaram não mais editar seus livros no Brasil.

Fora isso, o mimeógrafo veio facultar aos poetas jovens imprimir seus
próprios livros, sem ter de recorrer a editoras. Eles os imprimiam e
iam vendê-los nas ruas, nos bares, na porta de teatros e cinemas. É
claro que assim ganharam a simpatia dos leitores, tornando-se
conhecidos e, graças a isso, despertaram o interesse dos editores.

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