Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, outubro 10, 2011

O festival de besteiras não tem fim Denis Lerrer Rosenfield


O Globo - 10/10/2011
 

Ograu de liberdade de um país se mede pela liberdade de seus costumes, pelas escolhas que cada cidadão faz daquilo que estima ser melhor para si, sabendo reconhecer, no outro, um portador dos mesmos direitos. A sociedade brasileira tem tornado um valor seu a liberdade dos costumes, alterando velhos hábitos e, mesmo, legislações restritivas à liberdade de escolha. Contudo, recentemente, surge uma onda, patrocinada por agentes governamentais, do politicamente correto que procura reverter essa tendência, fazendo-o em nome de uma posição aparentemente "progressista". O retrocesso está mudando de nome.
Há setores do governo que têm uma visão definitivamente autoritária das relações políticas, invadindo, sem nenhum pudor, a esfera do privado, daquilo que é próprio de cada um. O poder passa a ser exercido sob a forma de um controle da vida individual, onde, por princípio, nada se coloca fora do seu alcance. A liberdade de escolha e, por extensão, de iniciativa, econômica, de imprensa, de publicidade são fortemente atingidas. Engana-se quem pensa que se trata de ações simplesmente pontuais. Em cada caso específico, revela-se toda uma concepção de mundo, das relações pessoais e, mais particularmente, dos costumes.
A última em série, mas infelizmente não a última, de um processo que parece interminável, está na tentativa da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República de enquadrar a novela "Fina estampa" da Rede Globo. O motivo, aparentemente anódino, diz respeito a um personagem, que, na trama, humilha e bate na mulher. Segundo o enredo, a personagem agredida é aconselhada por amigas a prestar queixa de seu marido, porém não o faz porque diz amá-lo. Trata-se, na verdade, de um retrato do que ocorre com muitos casais pelo país afora, sem que intervenha aqui nenhum juízo de valor. Cabe, isto sim, ao telespectador elaborar o seu.
Contudo, a secretária sugere em ofício enviado à TV Globo que essa mude o seu enredo. Segundo ela, a mulher agredida deveria procurar a Rede de Atendimento à Mulher, ligando para o telefone 180. Sugere ainda que o agressor seja não somente punido, mas encaminhado aos centros de reabilitação da Lei Maria da Penha. Aqui, a secretária já está se tornando especialista de dramaturgia. A "lei" do politicamente correto deveria, então, passar a reger a elaboração de novelas no país e, por que não, do cinema também.
O assunto é especialmente grave porque implica uma interferência governamental direta na liberdade de expressão, mesmo que seja feita sob a forma de uma "sugestão". Sugestão de ministra não é conselho de uma cidadã qualquer, mas de uma agente estatal. Trata-se de uma recomendação oficial. Em um primeiro momento, estamos diante de um fato menor, mas o problema reside em que a moda pode pegar. Logo, em um segundo momento, qualquer agente público estaria no direito de se tornar um dramaturgo oficial.
Retomando a frase do genial Stanislaw Ponte Preta, estamos diante de um outro episódio do Festival de Besteiras que Assola o País. O problema, contudo, é que esse festival se apresenta como politicamente correto, estabelecendo normas de como deveriam ser os costumes e de como a liberdade de escolha deveria ser cerceada.
No festival em curso, temos várias peças dignas de menção. Uma outra diz respeito a advertências que deveriam estar inscritas em roupas íntimas de homens e mulheres, advertindo para os perigos do câncer de próstata e de mama. Trata-se de uma invasão do domínio daquilo que é mais próprio de cada um, de sua vida íntima.
Imaginem, numa situação amorosa, em que o homem olha o sutiã de sua companheira e lhe pergunta se tem feito exames de mama. Ela, surpresa, olhando a sua cueca, responde se ele fez o seu exame de próstata. No auge da relação amorosa, o câncer, a morte, se introduz em uma relação de Eros, de vida. Não há clima que resista!
O clima, evidentemente, se esvai, dando lugar a uma conversa sobre os respectivos perigos de uma doença que pode ser mortal. Thanatos, a pulsão de morte, toma o lugar de Eros, pulsão de vida. E como isto é feito? Por intermédio do Estado que diz proteger a vida contra a morte! A vida privada deveria, acima de tudo, ser preservada de intervenções estatais, por mais politicamente corretas que sejam. Eis o perigo maior. O Estado se torna agente de Thanatos.
O festival não tem fim. A reincidente Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República já tinha anteriormente tentado tirar do ar um comercial de lingerie com a modelo Gisele Bündchen por essa se insinuar, no uso de seus atributos femininos, em um pedido a seu marido. Nada muito particular no fato, se não fosse a "polícia" do politicamente correto, procurando ditar aquilo que deve ou não ser veiculado por uma propaganda televisiva.
Seja dito de passagem que o anunciante de lingerie agradece, compadecido, à iniciativa governamental, pois a publicidade alcançada foi muito maior do que o previsto, seja ou não tirada a propaganda do ar. Jamais essa publicidade teria atingido tal grau de publicização não fosse essa interferência estatal.
O assunto encontra-se, atualmente, no Conar, órgão autônomo de regulação da publicidade para análise de sua adequação ou não a seu código de ética. Espera-se que este órgão tenha o bom-senso de rechaçar essa interferência naquilo mesmo que é o fundamento da ética, a saber, a liberdade de escolha livre das amarras governamentais.
O assunto é da maior gravidade, apesar de seu aspecto francamente cômico. Um agente estatal tem a pretensão de passar a decidir o que deve ou não ser veiculado na publicidade, interferindo em sua própria mensagem e criatividade. O mais preocupante, contudo, é que ele se crê imbuído da "crença correta" do que devem ser os costumes humanos. O governo se arroga em instrumento de uma espécie de dever-ser moral que teria como função passar a ditar as normas dos comportamentos politicamente corretos.

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