O Estado de S.Paulo - 16/10/11
O comércio e as finanças são os dois pilares da economia globalizada, dentro da qual estamos todos inseridos. Têm regimes internacionais distintos (OMC e FMI), que são, no entanto, interdependentes, como indica a discussão sobre os desalinhamentos cambiais e seu impacto no comércio exterior. Por causa da amplitude da crise financeira e das dificuldades da negociação da Rodada Doha, inseriu-se também na pauta internacional, com renovada intensidade, o tema do déficit da governança prevalecente na economia mundial. Disso se vem ocupando o G-20.
Na análise dos problemas da governança cabe destacar a diferença de perspectivas que separa o pilar do comércio, de que se incumbe a OMC, e o das finanças, que se insere no âmbito do FMI. É dessa diferença de perspectivas e de suas consequências que vou tratar neste artigo.
Não obstante as conhecidas dificuldades da negociação de Doha e em época de crise econômica como a atual, a OMC, por ser um sistema multilateral regido por normas, vem evitando o equivalente a um risco sistêmico do comércio internacional que se traduziria num protecionismo exacerbado e generalizado. Estimativas indicam que restrições comerciais afetaram 1% dos fluxos comerciais em 2009 e 0,9% em 2010.
Em contraste, o pilar financeiro está muito frágil desde a crise de 2008, que, a partir dos EUA, se alastrou pelo mundo. Tornou-se ainda mais quebradiço com a crise do euro. Esta incitou, este ano, a percepção dos riscos trazidos pelos processos de integração dos mercados impelidos por uma alta finança sem apropriada governança. A precariedade do pilar financeiro impacta, ainda que de maneira diferenciada, todas as economias nacionais, pois se internaliza na vida dos países por obra dos processos da globalização que tornam as fronteiras porosas, continuamente transpostas pelos fluxos de capital e pela circulação em rede das informações que, no caso, geram expectativas negativas. Estas, por sua vez, integram a realidade, influenciando os processos e os acontecimentos e trazendo à tona as insuficiências do FMI no trato da questão.
O FMI, assim como o Gatt, que antecedeu a OMC, foram concebidos para evitar que se repetissem as crises provocadas na década de 1930 pela Grande Depressão, que trouxeram guerras cambiais e protecionismos exacerbados, propiciadores de tensões que foram um dos fatores que induziram à 2.ª Guerra Mundial. De 1946 a 1971 o FMI teve um papel regulatório, cuja base era a da gestão das paridades cambiais, fixadas pela relação do ouro com o dólar. Essa gestão deixou de existir quando, em 1971, os EUA anunciaram que não mais converteriam em ouro as reservas em dólar ou outras moedas dos demais países.
Com o término das paridades fixas, as moedas passaram a flutuar livremente, umas em relação às outras, e a acumulação ou perda de reservas foi ocorrendo sem a aprovação ou desaprovação do FMI, ainda que com seu acompanhamento. Esse acompanhamento, em conjunturas de crises financeiras, e muito especificamente nas dos países em desenvolvimento, se fez em entrosamento com o sistema financeiro privado transnacional e é parte da história das duras negociações das dívidas dos países latino-americanos. Entre eles, as do México, da Argentina e do Brasil.
Uma postura não regulatória e não regida por normas, adepta da flexibilização dos padrões do aceitável e do não aceitável, foi se consolidando no âmbito do pilar financeiro, no contexto ideológico que se seguiu à queda do Muro de Berlim. Basicamente, a ideia a realizar que norteou essa postura foi a da desregulamentação nacional e internacional do pilar financeiro com base na crença no poder e na capacidade autorreguladora dos mercados livres. A autorregulação revelou-se desastrosamente inadequada diante da crise sistêmica induzida pelo próprio funcionamento dos mercados financeiros.
Foi distinta a postura do pilar comercial, que adquiriu uma institucionalidade própria com a criação, a partir da Rodada Uruguai, do Gatt, da OMC, que passou a ter vigência em 1995. Nem o Gatt, que foi uma instituição mais modesta que o FMI, nem a OMC, que tem outra amplitude em razão de sua vocação de universalidade e abrangência dos assuntos que disciplina, se basearam na irrestrita desregulamentação do comércio internacional. Com efeito, a concepção de governança do pilar comercial é a de favorecer um processo de liberalização do comércio mundial, regido por normas, porque o mercado não opera no vazio e não se autorregula sem um marco institucional.
Como aponta o Sutherland Report de 2005, sobre o futuro da OMC, de cuja elaboração participei, é preciso compreender o papel central de suas normas, que são seu ativo de governança, pois os acordos da Rodada Uruguai não são uma carta constitutiva de um livre-comércio sem limites. Foram negociados e concebidos para organizar, de modo funcionalmente eficaz, os méritos do livre-comércio que estimula a economia mundial, subordinando-o, porém, a princípios e normas. Estas oferecem a segurança e a previsibilidade do acesso a mercados e contêm dispositivos (como os de dumping e salvaguardas) que permitem, no âmbito de normas prefixadas, mecanismos de proteção dos mercados nacionais quando estes são afetados por atuações que contrariam as normas acordadas na Rodada Uruguai.
Esses dispositivos refreiam os unilateralismos dos protecionismos nacionais, pois são passíveis de controle por um inovador sistema de solução de controvérsias, acessível a todos os membros da OMC. Desse sistema se tem valido o Brasil com competência em defesa dos interesses nacionais, como realçou, com grande pertinência, o chanceler Patriota em artigo publicado neste espaço em 8/10. É por essa razão que a OMC é, para todos os seus membros, o grande hedge, o seguro do pilar do comércio da economia internacional, que contrasta com o quebradiço pilar financeiro.
PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC