Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, outubro 31, 2011

Não confesso que vivi LÚCIA GUIMARÃES

O Estado de S.Paulo - 31/10/11
Não quero confessar nada.

Sei que é uma postura quase belicosa.

Meu estado civil? Marque "nenhuma das respostas acima".

A saga dos meus avós imigrantes? Não revelo nem o país de origem.

A luta de meus pais para criar não-me-pergunte quantos filhos? Lutar para criar filhos não passa de um pleonasmo.

Quantos filhos trouxe ao mundo? Escorreguei há alguns anos e dei um depoimento sobre a maternidade, mas não está googleável.

Meus passatempos favoritos? Tricô e bingo (só para despistar).

O trauma de infância provocado pelo bully na hora do recreio? Dá um tempo.

Minha estratégia para vencer o preconceito contra a mulher na editoria de polícia? Rá, rá, nem trabalhei numa.

Minha redenção pela psicanálise freudiana? Vão associar livremente lá na esquina.

O leitor deve ter notado uma indisposição nesta coluna. Não se trata de azia ou má digestão. Tampouco é uma virose. É um achaque, sim, mas não consta da literatura dos diagnósticos.

Como definir a ânsia de trocar de canal, baixar o volume ou virar a página quando sinto o tsunami de mais uma copiosa confissão invadindo a praia dos meus sentidos?

Ontem à noite, por exemplo, sentei para assimilar minha dose diária de massacres na Síria, fome na Somália e cenas americanas que, se fossem exibidas num tom sépia, caberiam perfeitamente num cinejornal da Grande Depressão dos anos 30. Pois não é que interrompem o ciclo de notícias com o novo livro de memórias de um respeitado ex-editor de revista? Ele decidiu que estava na hora de nos infligir seu "triunfo sobre a adversidade". O bem-sucedido profissional, que sempre projetou autoconfiança com seus ternos impecáveis e frases bem passadas, revela ser filho de um negro e uma branca. Alerta para conflito! Seus pais se divorciaram. Trauma à vista! A família guardou vários segredos. Como ele pode confiar em alguém pelo resto da vida?

Longe de mim arbitrar sobre a relevância de experiências dolorosas. Mas estamos vivendo um tempo em que o umbiguismo é estimulado de tal forma que é difícil não ficarmos anestesiados com tanta concorrência pela empatia. Não sei de onde vem a ideia de que toda experiência pessoal merece ser compartilhada e alçada a literatura, como se fosse o excepcional O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion. Aliás, a própria escritora, que acaba de lançar outro volume de memórias, Blue Nights, deu esta iluminada declaração a uma revista nova-iorquina: "Antes eu tinha medo de morrer. Agora, tenho medo de não morrer".

Há um novo gênero de narrativa na primeira pessoa que hesito em chamar de memórias. O mais apropriado é chamar o gênero de "subi na vida o bastante para revelar o que me der na telha". Num momento em que a indústria do livro de papel dá sinais de pânico com o avanço do livro eletrônico, como justificar a quantidade de árvores derrubadas para imprimir tanta confissão?

Pouco antes de passar adiante seu cargo de editor-chefe do melhor e mais influente jornal da língua inglesa, Bill Keller escreveu uma coluna, em julho passado, sob o título Vamos Banir Todos os Livros, Ou ao Menos Parar de Escrevê-los. Keller não havia se transformado num Torquemada, nem pediu a queima de livros. No comando do New York Times, ele constatou o óbvio: o número impressionante de jornalistas que entravam em sua sala e pediam uma licença para escrever um livro. Ele contou, perplexo: "Dois editores estão escrevendo livros sobre seus cachorros. Ao mesmo tempo!"

A frase continha uma alfinetada em sua sucessora. A nova editora-chefe do Times, Jill Abramson, assumiu o cargo em setembro e em poucas semanas lançou seu volume, intitulado The Puppy Diaries (Os Diários do Filhote). Ahhhhh, que gracinha, eu me derreti só de ver a foto do cachorrinho Miles, hoje um adulto obediente. Alguém acredita que, quando estava lutando para ser aceita no mundo então predominantemente masculino dos cargos de chefia em jornais, quando, ainda mais jovem, era repórter do competitivo Wall Street Journal, Ms. Abramson ia querer ser conhecida por seu cachorrinho? Não importa a qualidade de seu texto ou as qualidades de Miles, para que dirigir a atenção do público para sua vida privada? E como explicar que o Times tenha publicado não uma, mas duas resenhas de sua nova obra?

Esta erosão da compostura, esta aceitação da bobeira como uma autoindulgência dos bem-sucedidos é descrita com maestria por Lee Siegel em seu excelente Are You Serious? (Você Fala Sério?). Mais Lee Siegel e menos memórias de cachorrinhos!

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