O GLOBO - 14/03/10
Aposto que, se eu não lhes dissesse, vocês não saberiam que hoje é o Dia Nacional da Poesia. Pois é, acho que ninguém lembra, é uma ingratidão com os nossos poetas. Pode ser que a pérfida memória me iluda, mas quero crer que antigamente os poetas eram mais estimados e poucos havia que não soubessem recitar uns dois poemas de cor. Até nos bregas da velha Salvador, lá conhecidos como castelos, alguns deles casas de cultura, era de esperar-se, antes de a noite acabar, pelo menos um Augusto dos Anjos caprichado ou um Olavo Bilac com o famoso plangente violão ao fundo. Aí pelo meio da madrugada, emoldurado por garrafas de cerveja e cercado pela admiração geral, um boêmio veterano recordava, com a voz soluçante e semiembargada, que a mão que afaga é a mesma que apedreja, embora o poeta fosse redimido pelo privilégio de ouvir estrelas.
Desde cedo a gente aprendia a admirar os poetas, que tinham até um perfil mais ou menos uniforme. Em primeiro lugar, usavam cabeleira de poeta e creio mesmo que algumas carreiras poéticas promissoras malograram porque o poeta ficou careca ainda moço e onde já se viu poeta careca. Em segundo lugar, traçavam todas as mulheres que decidiam seduzir com suas belas palavras, independentemente de idade, classe social, religião, cor ou estado civil, não havia essa que escapasse. Vários conhecidos meus tinham uma avozinha de cem anos que foi namorada de Castro Alves, era chique. Em terceiro lugar, o poeta passava meses sem ver o sol, era pálido e de saúde frágil, geralmente morrendo tuberculoso, com pouco mais de vinte anos.
A parte do morrer tuberculoso era meio chata, mas a gente se convencia de que o destino abriria uma exceção em nosso caso, conquanto morrer de sífilis ou envenenado por absinto fossem as outras opções. De qualquer forma, tentei muito ser poeta e devo admitir que comecei de forma desairosa, embora em conformidade com uma das mais venerandas práticas dos saltimbancos das letras de minha laia, ou seja, meter o mãozão no trabalho alheio. Bem verdade que eu não sabia direito o que era plágio, quando encontrei, num livro esquecido, um soneto escrito pelo general Osório. Copiei o soneto e o apresentei como meu, o que resultou em vistosa, se bem que efêmera, glória literária. Meu pai descobriu a falcatrua e me fez decorar e recitar o soneto perante a família, não sem antes anunciar que confessava se tratar de obra do general Manuel Luís Osório, marquês de Herval e patrono da Cavalaria. Passei grande vergonha, além de ter sido obrigado a estudar a vida do general.
Pouco depois disso, influenciado por um amigo intelectual, fui muito exortado a perseguir as tais belas palavras. Entre elas, não sei por quê, ele tinha preferência por "nenúfares" e tanto me impressionou que escrevi até uma coleção de besteiras rimadas intitulada "Nenúfares", que, Deus seja louvado, nunca mostrei a ninguém, a não ser a meu pai, que aplicou nova ducha fria em minha trajetória poética, afirmando que nenúfar era coisa de baitola. Trauma de infância e deve ser por isso que até hoje não sei o que quer dizer "nenúfar". Vou ao dicionário, olho e esqueço dez minutos depois, como agora (cartas sobre o que quer dizer nenúfar para o editor, por caridade).
Não cheguei a desistir e, já entrado na adolescência, comecei a ler o que então se chamava "poesia moderna", execrada pelos mais velhos por dispensar rima e metro, mas, para nós, poetastros renitentes, uma benção. Não teríamos mais que procurar rimas nem ficar contando pés de versos, agora era só escrever em linhas de comprimentos desiguais. Foi isso mesmo que pensei, ao perpetrar o primeiro canto de um poema épico que trataria de nossas origens como povo, as famosas três raças tristes de que os livros antigos falavam. Escrevi quase um caderno todo e fui mostrá-lo a meu grande professor de português Antônio Barros, então começando carreira no também grande Colégio Central da Bahia. Acho que pressenti alguma coisa, porque não disse a ele que o autor do poema era eu.
- Ah, eu logo vi que não era você - disse ele, segurando o caderno à distância e fazendo uma careta, como quem pega em algo fedorento. - O autor deste negócio devia ser preso imediatamente, não pode ficar solto por aí. Evite a convivência, isso pega.
- Obrigado, mestre - disse eu e, de lá para cá, tenho contido meus ímpetos poéticos, não sem acentuada mágoa. A cabeleira desde os verdes anos já se foi, as mulheres nunca choveram, o estro continua a escapar-me. Mas isso não me impede de prestar minha homenagem aos poetas. Se nunca pude ser um deles, pelo menos posso exaltar seu papel. Se hoje é o dia deles, lembremos o quanto puseram em palavras o que para nós sempre foi indizível, o quanto nos abriram a sensibilidade, o quanto enobrecem a nossa língua, o quanto nos dão para recordar em comum.
E, se não posso fazer um poema comemorativo, posso pensar em outras celebrações. Ou posso juntar-me a quem esteja também comemorando. Procuro, pois, informar-me sobre o dia de hoje. Mas, com enorme decepção, constato que o Dia da Poesia não é observado no país de onde veio a nossa língua. Mais um golpe contra a poesia. Isto porque, em Portugal, vivendo e aprendendo, hoje não é o dia dela, mas o Dia da Incontinência Urinária.
Acho que estão tentando me dizer alguma coisa, ninguém liga mais para a poesia. Mas não é o caso de abandoná-la. Só aparentemente o Dia da Incontinência Urinária não pode ser conciliado com o Dia da Poesia. De minha parte, me sentirei recompensado se, depois de ler isto, alguém der um fraldão a seu velho mijão favorito, acompanhado de um cartão com versinhos.