Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Miriam Leitão:Silêncio forçado

O GLOBO

O governo periga errar 100% nas duas brigas com os militares. Recusa-se a aceitar o relatório técnico da Aeronáutica sobre a compra dos caças e submete-se às ordens dos comandantes militares de que não se investigue os crimes cometidos durante a ditadura.

Vai dizer não ao que deveria dizer sim; e dizer sim ao que deveria dizer não. O país não pode ter medo do passado, e quem entende de caças é a Força Aérea.

O governo encomendou um estudo sobre qual é a melhor proposta técnica na oferta de caças para reequipar a Aeronáutica. E pediu, claro, à Aeronáutica, que é quem entende do assunto e quem vai operar o equipamento. Se um estudo foi encomendado é para ser levado em consideração; quem encomendou tem que esperar a resposta dos técnicos antes de dar declarações favoráveis a um dos concorrentes. O presidente Lula e o ministro Nelson Jobim não esconderam suas preferências pelos franceses e o Planalto diz que a decisão é política.

Errado. A decisão precisa, antes de tudo, atender ao objetivo principal: o equipamento tem que ser eficaz na vigilância e proteção do país. Atendido esse requisito, é inevitável pensar em qual proposta é mais barata e em qual teremos mais controle da tecnologia, para não ficarmos dependentes do fornecedor.

O governo tem insinuado que o país tem que fazer uma aliança estratégica com uma potência europeia, como a França, na área militar. Contra quem mesmo? Está faltando explicitar melhor esse pensamento por que ele está meio surrealista, dado que não estamos nos armando contra um país especifico, mas apenas para que as Forças Armadas cumpram seu papel de vigilância e proteção do território e de força dissuasória.

Quanto ao que se passou no aparelho de Estado durante a ditadura, é claro que o assunto precisa ser encarado.

Não pode haver um tema tabu. Todos os regimes de força enfrentaram investigações após o seu término.

Na América Latina, todos os países que passaram pela mesma situação estão lidando com o tema, de uma forma ou de outra. O Brasil está afundado em sofismas.

A apuração do que se passou, do que aconteceu com os desaparecidos, dos crimes de tortura e morte cometidos dentro de quartéis ou por militares, é um dever para com a História, para com as futuras gerações.

Não pode ser entendido como revanchismo o que é a simples busca de informações.

Sempre que se fala nisso, os militares respondem ou que as informações estão todas disponíveis, ou que elas foram destruídas. Disponíveis não estão; se estivessem, no mínimo o país saberia como desapareceram os desaparecidos. Se foram destruídas é preciso dizer quem as destruiu, com que propósito e sob ordens de quem. Como se sabe, os militares recebem e cumprem ordens.

Uma investigação honesta e ampla não ameaça as Forças Armadas como instituição.

O que se procura saber são os eventuais culpados por crimes que foram cometidos. Quem os cometeu usou o Estado contra cidadãos e esclarecer isso não é ameaça à instituição em si. Se os atuais comandantes vetam qualquer discussão do tema, aí sim estão envolvendo a instituição, como um todo, numa questão conjuntural de tempo determinado. Na Argentina, alguns militares, inclusive o general Jorge Rafael Videla, estão presos, e o Exército continua lá exercendo as suas funções institucionais.

Há um outro sofisma presente no debate dos últimos dias: o de que se houver punição tem que ser para os dois lados, se houver julgamento, que ele recaia também sobre quem praticou crimes na esquerda armada. Os militantes de esquerda, ou os que se opuseram ao regime, mesmo os que nem pegaram em armas, foram presos, torturados, julgados, exilados, aposentados, cassados, demitidos, perseguidos. Estiveram diante de tribunais de exceção, que sequer respeitavam direitos de defesa, de recurso, de apresentação de provas. Eram julgados não por juízes, mas por militares, como se fossem criminosos de guerra. Os dois grupos não são iguais: um foi punido, o outro conta com o conluio do silêncio.

Um grupo é formado por pessoas que têm rosto, nome, endereço. O outro é formado por pessoas sem rosto, que vivem nas sombras e das sombras.

Há o argumento de que a Lei de Anistia foi para os dois lados. A lei é de 1979, seis anos antes do fim do regime, dois anos antes da explosão do Riocentro. Foi a lei possível. Agora, 25 anos depois do fim do regime militar não há razão alguma para que o poder civil se curve, com medo do veto dos militares.

O país tem uma ferida, ela permanecerá aberta, a menos que seja tratada. A conciliação não ocorrerá por efeito da farta e equivocada distribuição de indenizações — contra as quais me pronuncio nesse espaço há 15 anos — nem pelo silêncio forçado. No lançamento do livro “Direito à Memória e à Verdade”, o ministro Nelson Jobim afirmou: “Não haverá indivíduo que a este ato possa reagir. Se houver, terá resposta”. Era bravata do ministro. Recentemente, o governo gastou R$ 13 milhões numa campanha publicitária apelando às pessoas que forneçam informações que ajudem na localização de corpos e esclareçam episódios da ditadura.

Patético! As Forças Armadas são hoje democráticas e respeitosas da lei e da ordem. Não têm por que impor limites ao governo e à sociedade na investigação sobre um tempo infeliz da nossa História.

O poder civil não tem razão alguma para se deixar tutelar.

Se o país tomar a decisão de não enfrentar o passado, que seja por outros motivos, mas não por imposição dos militares. Do contrário, esta será uma democracia amedrontada.

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