O Globo Editorial
Pouco antes de tomar posse, o governador Sérgio Cabral recebeu do então comandante da Polícia Militar, Hudson de Carvalho, um documento que dissecava os males da corporação. Às vésperas de entregar o texto, o coronel fez uma profissão de fé no papel da PM como avalista da segurança da sociedade: “Sonho ver uma polícia íntegra, transparente e acima de tudo humana.” Os recentes acontecimentos envolvendo a Polícia Militar do Rio, com demonstrações na tropa de banditismo (caso do capitão e um subordinado que deixaram de prestar socorro ao agonizante coordenador do AfroReggae para esbulhar os assaltantes que haviam acabado de atirar nele) e corporativismo (a tentativa de um oficial de atenuar a ação dos dois policiais) são triste evidência de que a PM está longe de ter se tornado a polícia cidadã dos sonhos do ex-comandante.
Junte-se a tais malfeitorias mazelas crônicas, como a corrupção de policiais, a existência de uma banda podre que opera com desenvoltura de dentro do organismo e a má fama decorrente da constatação de que a PM do Rio é a que mais mata no país, e tem-se um quadro preocupante, que nem mesmo os inegáveis avanços no controle e na atuação da tropa, obtidos no atual governo, conseguem disfarçar. A Polícia Militar fluminense é um organismo doente, que precisa passar urgentemente por um processo de cura — num preceituário do qual torna-se inescapável uma dolorosa clivagem interna para expurgar a parte contaminada da corporação.
A receita parece óbvia, mas para tal é imperioso que mecanismos de controle sejam incorporados à PM de fora para dentro. O conhecido corporativismo, que fez o major afastado da assessoria de relações públicas insinuar um perdão prévio para dois maus policiais, é um vício incurável. Colegas de farda têm sabidamente dificuldades — para dizer o mínimo — de punir companheiros de trabalho, e mesmo os dispositivos correcionais da corporação não são blindados o suficiente para garantir a isenção nas investigações de desvios profissionais.
Também o Ministério Público, competente para denunciar crimes de policiais na Justiça comum, não parece ser forte o suficiente para ajudar a inibir ações marginais que maculam a imagem da polícia. Em defesa da sociedade, portanto, há que se aperfeiçoar mecanismos externos que permitam o enquadramento daqueles que, na afronta às leis, se beneficiam de um dispositivo de força criado para avalizá-las.