"Maradona era o deus dos estádios – mas era assaltado
por um sentimento de incompletude. Que lhe faltava?
Ora, o que lhe faltava… O sal da terra: o fracasso"
Foi uma pena a Argentina ter ganhado do Uruguai. Não pelo futebol, que o leitor não entenda mal. Pelo futebol em si, ainda bem que ela ganhou e assegurou o direito de participar da Copa do Mundo. Copas do Mundo não podem prescindir da Argentina; a ausência de um de seus maiores atores as condena a evento de segunda ordem. Foi uma pena porque dessa forma a Argentina se viu privada de uma de suas mais caras aspirações – o fracasso. Nada mais argentino do que o fracasso. O sofrimento é o alimento de que se faz a nacionalidade. "Os argentinos sofrem de modo tão insuportável que cada um mereceria uma indenização ao nascer", dizia o maior ator cômico do país, Tato Bores. O argentino genuíno, o castiço, o de mais pura cepa, é vidrado no fracasso. Impulsiona-o uma visão de mundo expressa de modo brutal no famoso primeiro verso do tango Cambalacho: "Que el mundo fué y será una porquería ya lo sé".
Está aí o caso deste assombroso Diego Armando Maradona que não nos deixa mentir. Ele era o deus dos estádios – mas era assaltado por um sentimento de incompletude. Que lhe faltava? Ora, o que lhe faltava… O sal da terra: o fracasso. Ele se entrega às drogas. O corpo se deforma num balofo de levar ao júbilo o selecionador de elenco de Federico Fellini. A vida vira uma corrida entre internações e recidivas. Na verdade ele não é apenas o deus dos estádios. É Deus mesmo, muito mais que Pelé, que é apenas rei. Na Igreja Maradoniana, uma entidade fundada em Rosário, é identificado pelo tetragrama D10s, combinando Seu número da camisa com a palavra dios. No entanto, é um deus que, enfastiado com os acenos de imortalidade, flerta com a morte.
A certa altura ele se recupera. Deixa as drogas, emagrece, ressurge para a vida. E o que resolve fazer? Pasmem: ser técnico da seleção! Na Argentina como no Brasil, não há posto mais adequado a quem aspira ao flagelo. Ainda se ele fosse um técnico profissional, que precisasse do emprego, ou a quem valeria o risco para coroar a carreira… Mas não. Ele é D10s. A Pelé, que não passa de rei, jamais ocorreria tal desvario. Mas Maradona sentia de novo um vazio na alma. Faltava-lhe o conforto do fracasso. Quase conseguiu. Dois gols milagrosos, no finalzinho das duas últimas partidas, salvaram a Argentina da desclassificação.
No final da segunda delas, contra o Uruguai, na última quarta-feira, o Pibe de Oro deu-se a uma comemoração orgiástica. Era um possesso, a pular e gritar. Ora, direis, como pode flertar com o fracasso alguém que se lança desse jeito à comemoração de um sucesso? Pois no ato seguinte, ao comparecer à sala de imprensa, eis que, para vingar-se dos que puseram seu trabalho em dúvida, recepciona os jornalistas com uma torrente de palavrões. O prazer da vitória dissolvia-se na raiva. Longe dele querer apresentar-se como olimpicamente vitorioso. Xingando como nem nos lupanares do cais, ao vivo na TV, garantia que no futuro não se esquecessem de desprezá-lo. A nostalgia do fracasso já avançava sobre sua alma inquieta.
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Nobreza, clero e terceiro estado eram as três classes sociais no Antigo Regime francês. Em três classes também se divide a população da embaixada brasileira em Honduras, segundo a descrição do repórter Lourival Sant’Anna, do jornal O Estado de S. Paulo. Integram o time da nobreza o presidente deposto Manuel Zelaya, sua mulher e os assessores. Clero não há lá dentro, mas digamos que podem preencher essa lacuna aqueles que, numa versão benigna, são sacerdotes da notícia – os jornalistas. O terceiro estado é representado por um povo de seguidores de Zelaya, entre os quais operários, agricultores, professores e pequenos empresários.
O casal Zelaya e os assessores, segundo constatou o repórter, ocupam quatro salas, servem-se de dois banheiros com chuveiro – mais espaço que o que sobra para todos os outros – e dormem em colchões de ar e sacos de dormir. Os demais se viram com três banheiros, só um deles com chuveiro, e dormem em sofás ou no chão. A nobreza come a comida que a empregada dos Zelaya lhe manda de fora. O clero, a comida de restaurante que colegas lhe compram. O terceiro estado fica com sua versão do sopão dos pobres – marmitas que lhe são enviadas por um Comitê de Direitos Humanos. O discurso de Zelaya é em favor da igualdade, mas ele não nega a raça. Latino-americanos são vidrados numa desigualdade.