Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 17, 2009

Especial O cérebro de Albert Einstein

A saga de uma mente genial

Como os estudos do cérebro de Einstein ajudam a compreender
o mistério da inteligência e da genialidade humana


Leandro Narloch, de Princeton

Sipa Press

O GUARDIÃO FIEL
Thomas Harvey, patologista que fez a autópsia de Einstein: ele decidiu que sua missão na vida era a guarda e a pesquisa do cérebro do físico


VEJA TAMBÉM

Albert Einstein foi o cientista mais popular de toda a história. Seu rosto é o único que a maioria das pessoas reconhece como o de um gênio – especialmente naquela foto na qual, irreverente e cabeludo, ele mostra a língua para o fotógrafo. Não é para menos. Einstein revolucionou o conhecimento do homem sobre a natureza. Mostrou a existência de um mundo invisível, cheio de moléculas e átomos em constante agitação. Suas digitais estão num amplo leque de tecnologias que hoje fazem parte do nosso cotidiano. Células fotoelétricas e laser, energia nuclear e fibras ópticas, viagens espaciais e até os chips de computadores derivam de suas ideias. E, não se deve esquecer, foi ele quem colocou na boca do povo o conceito de que tudo é relativo. Os elementos da genialidade em sua vida são de fácil descrição: originalidade, inteligência, percepção e realizações que excedem as de qualquer um de seus contemporâneos em seu campo de estudo. Mais complicado é explicar, cientificamente, de onde vinha todo esse talento. É compreensível que tantos cientistas se debrucem hoje sobre o cérebro do físico genial – retirado pelo médico-legista após sua morte, em 1955 – em busca da solução de um grande enigma: existiria no órgão alguma característica anatômica capaz de influenciar a inteligência de uma pessoa? A resposta a essa pergunta não diz respeito apenas a Einstein. Ela ajudaria também a entender a inteligência em todos nós.

O repórter Leandro Narloch, de VEJA, foi aos Estados Unidos para conhecer de perto as principais pesquisas e conversar com os cientistas que trabalham com o cérebro de Einstein. No escritório de Elliot Krauss, patologista-chefe do Hospital de Princeton, em Nova Jersey, Narloch teve a oportunidade de conhecer, por assim dizer, o próprio Einstein. Ou, pelo menos, a maior porção remanescente de seu corpo. São 180 fragmentos de seu cérebro, embrulhados em pequenos pacotes de gaze e boiando em álcool dentro de dois potes de biscoito dos anos 50. Na sala apertada do patologista-chefe, o que resta de Einstein divide uma prateleira com microscópios, relatórios e pilhas de prontuários médicos. "Muita gente pede para vê-lo ou quer levá-lo para estudos ou exposição, mas eu raramente digo sim", explicou a VEJA. "Prometi cuidar bem desse cérebro, e agora essa missão de guardião se tornou parte da minha vida."

Fotos Gilberto Tadday e Steve Pyke/Getty Images
O GÊNIO NA GARRAFA
O médico Elliot Krauss (à esq.), no Hospital de Princeton: ele conserva 180 pedaços
em dois potes de biscoito. Ao lado, fragmentos plastificados do cérebro

Esse senso de missão científica teria agradado a Einstein. Ele foi um teórico apaixonado que no leito de morte ainda rabiscava equações na tentativa de corrigir o que considerava imperfeições na mecânica quântica. Mas como reagiria se lhe fosse possível comentar as aventuras pelas quais passou seu cérebro? Apesar de sua aura de gênio, Einstein foi um homem de simpática simplicidade. Em vez de pompa, ele preferiu ser cremado na mesma tarde em que morreu, antes que o mundo tivesse tempo de se mobilizar em sua homenagem. Para evitar que seu túmulo se tornasse local de macabra veneração, as cinzas foram levadas por seu filho até o rio mais próximo e espalhadas nas águas. Seu mais recente biógrafo, o americano Walter Isaacson, conta que uma autópsia de rotina foi realizada pelo patologista-chefe do Hospital de Princeton, Thomas Harvey, que usou uma serra elétrica para abrir o crânio e retirar o cérebro. Quando costurou o corpo, o médico decidiu, sem pedir permissão à família do morto, embalsamar o cérebro de Einstein e guardá-lo. Harvey não pretendia ganhar dinheiro com uma relíquia. De temperamento um tanto sonhador, acreditava que poderia haver valor científico no estudo da massa encefálica de um gênio reconhecido.

Harvey também se atribuiu a missão de zelar pela preservação do órgão e decidir se podia ou não examiná-lo. Uma de suas primeiras providências foi fotografá-lo e cortá-lo em 240 pedaços, etiquetando cada um. Depois, pediu a colegas da Universidade da Pensilvânia que dividissem parte do cérebro em fatias microscópicas. Ele próprio levou o material, acomodado em dois vidros no banco de trás de seu carro, até a Pensilvânia. Foram os primeiros 400 quilômetros da longa viagem post-mortem do cérebro. Por anos, Harvey enviou amostras a diversos pesquisadores, escolhidos segundo seu gosto pessoal. Existem hoje fragmentos em laboratórios dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Japão, Alemanha, Argentina e até mesmo em Calcutá, na Índia. A mais conhecida viagem do cérebro de Einstein foi narrada por um de seus protagonistas – o jornalista Michael Paterniti, da revista Harper’s – no livro Conduzindo o Sr. Albert. No fim dos anos 90, Paterniti convenceu Harvey a levar o cérebro, de carro, para a casa de Evelyn, a neta do cientista que vivia na Califórnia, do outro lado do país. Filha adotiva de Hans Albert, primogênito de Einstein com sua primeira mulher, Mileva, Evelyn achava que valia a pena investigar os rumores de que poderia ser, na verdade, filha biológica do vovô Einstein. A versão fazia sentido, uma vez que ela nasceu num período em que Einstein, viúvo ainda fresco, teve várias namoradas. O plano era descobrir a verdade analisando o DNA contido no cérebro. Infelizmente para Evelyn e para os historiadores, o modo como Harvey conservara o material tornou impossível a extração de uma amostra de DNA. Em 1998, já com 86 anos (ele ainda viveu até 2007), Harvey passou adiante a guarda do cérebro ao serviço de patologia de Princeton. Foi assim que Einstein foi parar na prateleira abarrotada de Elliot Krauss.

A inteligência é a mais intrigante entre as capacidades do cérebro humano. A dificuldade é entender o que, exatamente, é a inteligência. A definição dada a VEJA por Shane Legg, da Unidade de Cálculo e Neurociência da Faculdade de Londres: "A definição técnica inclui a habilidade de tomar decisões, o poder de agir de maneira rápida e sensata em diversas circunstâncias, além de considerar que o indivíduo esteja apto a aprender, a se adaptar rapidamente, que tenha boa memória, capacidade de foco e pensamento rápido, lógico e soluções criativas para novos problemas". O segundo desafio é onde, entre os bilhões de neurônios do cérebro, o cientista deve procurar sua origem e mecanismos. Para um olhar destreinado, o cérebro de Einstein seria uma decepção. Segundo o médico-legista, o órgão pesava 1 230 gramas, menos que a média masculina, que é de 1 400 gramas. O volume também estava 4 centímetros abaixo da média. Essa atrofia provavelmente era uma decorrência da idade (o cientista morreu com 76 anos), o que é perfeitamente normal.

O número de sinapses e a velocidade de formação de novos neurônios diminuem a partir dos 35 anos. A quantidade de neurônios também se reduz. Um cérebro excepcionalmente bem dotado de conexões na juventude pode, com o passar do tempo, ficar mais próximo da média. Em 1905, o annus mirabilis, em que publicou os cinco ensaios que viraram pelo avesso a física moderna, Einstein era um rapaz boa-pinta de 26 anos. No minuto seguinte à morte, têm início um processo acelerado de decomposição por ação das bactérias e o desaparecimento de estruturas essenciais ao funcionamento cerebral. Neurônios, suas sinapses e a glia (o combustível das estruturas neurais) deterioram-se em apenas dez minutos. As análises post-mortem, já que não podem registrar o cérebro em funcionamento, buscam informações sobre o formato, a densidade e o tamanho de regiões e do conjunto, assim como sua composição microscópica. No caso de Einstein, a comparação com outros cérebros ajuda na busca das diferenças que possam estar ligadas à inteligência. O estudo do material embalsamado constitui um universo riquíssimo para a ciência.

O que se descobriu de mais relevante sobre o cérebro de Einstein pode ser exemplificado em cinco grandes pesquisas, realizadas por instituições científicas de primeira linha nos últimos 25 anos. Foram os autores desses trabalhos que VEJA procurou para preparar esta reportagem. O estudo mais antigo é da anatomista Marian Diamond, da Universidade da Califórnia em Berkeley, publicado em 1985. Ela recebeu quatro lâminas microscópicas do lobo parietal dentro de um pote reutilizado de maionese e contou as células em cada seção. Notou então que a concentração no lobo parietal inferior esquerdo de células gliais em relação aos neurônios era a maior dos onze cérebros usados como comparação. O lobo parietal é uma área no topo do crânio, acima da nuca, responsável pela noção de espaço e pelo pensamento matemático. Uma interpretação possível é que os neurônios de Einstein usavam e necessitavam de maior energia. Daí se pode inferir sua inteligência superior. Infelizmente, como não havia nenhum gênio entre os onze outros cérebros, não foi possível estabelecer um padrão.

A pesquisa mais conhecida é a da neurocientista Sandra Witelson, da Universidade McMaster, em Ontário, em 1999. Comparado com os cérebros de 35 outros homens, o lobo parietal de Einstein era 15% maior e mais largo exatamente na parte responsável pelo processamento do pensamento matemático e pela concepção espacial. Além disso, não tinha os sulcos que separam as duas porções dessa região, o que, em teoria, facilitaria a comunicação entre os neurônios ali situados. O resultado seria uma forma de pensar mais eficiente e inovadora, na opinião da pesquisadora. "A extrema habilidade do raciocínio visual e matemático de Einstein pode ser explicada por essa anatomia incomum", disse Witelson a VEJA. Mais dois estudos percorrem caminhos similares, mas em outras áreas do cérebro. A neurologista Dahlia Zaidel, da Universidade da Califórnia, observou que os neurônios do lado esquerdo do hipocampo, área relacionada à memória, eram mais longos que os do lado direito. Isso sugere uma associação mais fácil do hipocampo com o córtex frontal, o que tornaria Einstein mais capaz de relacionar memórias com raciocínios. O neurologista Britt Anderson, da Universidade do Alabama, percebeu que o córtex de Einstein era mais fino e mais denso que o de outros cinco cérebros analisados. A suposição óbvia é a de que a maior densidade esteja relacionada à genialidade.

A pesquisa mais recente, publicada há apenas seis meses pela antropóloga Dean Falk, da Universidade Estadual da Flórida, também identificou padrões incomuns de sulcos e fissuras no córtex cerebral. Sua conclusão é surpreendente. Ela sugere que o cérebro de Einstein não era mais eficiente que o de qualquer outra pessoa, mas funcionava de modo diferente. Em seus estudos, Falk constatou uma formação incomum. A fissura lateral do córtex, um sulco que segue o mesmo caminho da haste dos óculos e é associado à linguagem, normalmente termina com uma pequena curva para cima. O de Einstein convergia para o sulco pós-central, dividindo o cérebro pela metade. A configuração rara pode ter causado dificuldades com a linguagem. Essa fraqueza teria sido o incentivo que o levou a desenvolver com maior força o pensamento tridimensional, crucial para a criação da Teoria da Relatividade.

Certos indícios biográficos contribuem para a teoria de Falk. Einstein só aprendeu a falar aos 3 anos, na escola tirava notas baixas em alemão, seu idioma materno, e custou a aprender uma segunda língua, o inglês. Ele sempre dizia que "a imaginação é mais importante que o conhecimento" e contava que suas ideias mais brilhantes apareciam de repente, em forma de cenário. Para demonstrar a relatividade do tempo, ele se imaginou caindo de um elevador ou disputando uma corrida, na velocidade da luz, com um raio. Será possível que sua genialidade fosse realmente o resultado de uma formação extravagante no cérebro? "O grande entrave para as pesquisas que tentam responder a essa questão é que até hoje não foi descoberta uma relação entre o formato e a composição do cérebro e os dotes intelectuais", disse a VEJA o neuroanatomista Jackson Bettencourt, da Universidade de São Paulo.

Especialistas acreditam que três fatores estão associados a uma inteligência superior. A primeira é uma arborização mais volumosa e rica dos dendritos. Esses prolongamentos do neurônio recebem os sinais elétricos das terminações dos neurônios vizinhos, estabelecendo a comunicação entre eles e transmitindo informações. Ou seja: quanto mais dendritos, mais fácil e eficiente seria a comunicação entre os neurônios. O segundo fator é uma maior conectividade entre os neurônios, ou seja, um maior número de sinapses. O terceiro é uma inter-relação mais eficiente de várias áreas do cérebro para realizar uma determinada função. É possível que o cérebro de Albert Einstein usasse várias partes do cérebro ao mesmo tempo para desempenhar uma função ou fizesse mais conexões sinápticas do que o da maioria das pessoas. O difícil é saber o que teria feito Einstein desenvolver essas habilidades. "Provavelmente, foi uma conjunção de fatores ambientais e genéticos. Ele tinha o potencial mental e estava exposto ao melhor ambiente possível para desenvolvê-lo", diz o neurologista Mauro Muszkat, de São Paulo. As últimas décadas do século XIX foram de grande efervescência intelectual. A velocidade das descobertas era um incentivo para que um jovem talentoso abraçasse o caminho da ciência. É impossível não perguntar o que poderíamos ter aprendido se o cérebro de Einstein tivesse sido preservado com recursos modernos. Os cientistas dispõem hoje de técnicas avançadas para retirar e armazenar fragmentos cerebrais. O micrótomo, por exemplo, corta tecidos em lâminas de uns poucos milésimos de milímetro de espessura, que podem ser indefinidamente conservados em plásticos especiais. Por outro lado, como seria se ele vivesse nos dias de hoje? A resposta não é animadora. As técnicas de ressonância magnética e tomografia computadorizada, que hoje registram o funcionamento do cérebro, não podem dar uma resposta satisfatória sobre o mistério da inteligência humana. "Ainda que se possa traçar uma relação entre determinada função e uma área cerebral, a precisão dessas técnicas é a mesma de estudar uma célula com uma lupa", diz o neurocientista Ivan Izquierdo. Nem por isso se deve imaginar que o estudo do cérebro de Einstein esteja encerrado. Sobre isso, a antropóloga Dean Falk afirma: "À medida que a neurociência avança, o mistério da genialidade de Einstein se torna mais e mais atraente para quem pesquisa a inteligência".

Com reportagem de Paula Neiva, Gabriela Carelli, Laura Ming e Renata Moraes

Enigma do cérebro avariado

Carolina Romanini

Wilton Junior/AEW

CHANCE DE ADAPTAÇÃO
Imagens de um crânio atravessado por arpão

Enquanto cientistas tentam entender a genialidade de Albert Einstein, a medicina se surpreende com circunstâncias absolutamente opostas: das pessoas que vivem bem com apenas parte do cérebro. Dois anos atrás, uma radiografia de rotina revelou um oco no interior da cabeça de um francês de 44 anos. Só depois de submetê-lo a exames de tomografia e ressonância magnética, os médicos da Universidade do Mediterrâneo, em Marselha, perceberam que ele tinha cérebro, mas minúsculo e alojado como uma capa rente ao crânio. Ainda assim, esse francês viveu quatro décadas sem chamar atenção. Vinte anos atrás o cérebro era visto como sendo formado por setores estanques, cada um deles responsável por determinada habilidade.

A descoberta da neurogênese, o processo de produção de novos neurônios ao longo da vida, em 1998, e o avanço da tecnologia de neuroimagens revelaram uma realidade diferente. O cérebro tem capacidade de se regenerar e de se adaptar. Quando uma área sofre dano, outra pode muitas vezes assumir suas funções. Oito em cada dez crianças que, para curar a epilepsia, tiveram um hemisfério retirado vivem normalmente com meio cérebro. "As conexões cerebrais são globais. Cada tarefa é realizada não por uma única área, mas por uma densa rede de neurônios", explica Benito Damasceno, chefe do departamento de neurologia da Faculdade de Medicina da Unicamp. As funções vitais, como o batimento cardíaco e a respiração, estão protegidas em áreas profundas, como o hipotálamo e o tronco cerebral. A maior parte do cérebro é constituída de massa encefálica, sem nenhuma função vital. Isso explica como uma pessoa pode ter a cabeça transpassada por um arpão e sobreviver sem sequelas (veja as fotos acima). "O cérebro é mais parecido com uma floresta do que com um relógio ou computador, como se pensava no passado", diz o neurologista Mauro Muszkat, da Universidade Federal de São Paulo


A alma em um pen drive?

Francis Crick sugeriu que a alma é o cérebro.
Miguel Nicolelis acha que um dia os comandos cerebrais
poderão ser lidos, digitalizados e gravados, e essa espantosa
viagem está apenas começando

Fotos AFP e AKG/Latinstock
NICOLELIS E AS NEUROPRÓTESES
O trabalho pioneiro do cientista paulista faz dele o brasileiro mais próximo de ganhar um Prêmio Nobel


Francis Crick, o gênio da dupla formada com James Watson, descobriu a hélice da molécula de DNA e abriu caminho para uma revolução na biologia e na medicina. Crick morreu em 2004 obcecado por uma ideia que lhe parecia ainda mais extraordinária do que a transmissão bioquímica dos caracteres hereditários. Cientista rigoroso, prisioneiro de uma curiosidade insaciável, Crick teve na idade madura o que ele chamou de "estalo", fenômeno recorrente nas pessoas de alta densidade cultural e intensa atividade intelectual. O estalo lhe jogou na corrente de pensamento o seguinte enigma: se, como é sabido, o volume de informações encapsuladas na molécula de DNA é insuficiente para criar algo tão complexo quanto o cérebro humano, é válida a hipótese de que a mente humana deveria ser muito mais do que apenas o somatório de reações químicas e elétricas. Crick lembrou-se de uma história contada por Odile, sua mulher. Quando menina, na Inglaterra, ela ouvia de sua professora de religião a passagem do catecismo católico atestando que "the Soul is a living being without a body, having reason and free will" (a alma é um ser vivo sem corpo, dotado de razão e livre-arbítrio). O pesado sotaque irlandês da professora fazia "being" soar como "bean" (feijão), e por muitos anos Odile se atormentou em silêncio com a ideia de que a alma fosse um "feijão vivo". Francis Crick juntou seu estalo ao feijão animista da infância da mulher e daí nasceu uma tese transformada no livro A Hipótese Espantosa: a Ciência em Busca da Alma, publicado dez anos antes de sua morte. Sua hipótese é que o cérebro humano não é apenas a sede da alma, do intelecto e dos sentidos, como já sugerira o grego Hipócrates 400 anos antes do nascimento de Cristo. O cérebro é a alma. Portanto, a alma nada mais seria do que o resultado de interações químicas e elétricas ocorridas na rede cerebral de células especiais, os neurônios.

Apesar de toda a genialidade de Francis Crick e de sua extraordinária coragem, a questão está longe de ser resolvida. Alguns neurologistas chegaram a sugerir que o cérebro humano, guloso devorador de energia na forma de glicose, pesado e frágil, é um ser vivo dotado de razão e livre-arbítrio – com um corpo. O cérebro seria um hospedeiro do corpo e manteria com ele não uma relação simbiótica, mas de dominação. Crick gostava dessa ideia. Ela o ajudava a resolver o enigma da alta complexidade do cérebro e o fato de isso não poder ter sido determinado pelo DNA. Se o cérebro não é apenas um órgão do corpo, mas seu dono – e um dono dotado de poder incontrastável –, ele tem capacidade de comandar os processos de modo que o organismo humano satisfaça suas necessidades metabólicas de crescimento em tamanho e em complexidade. O grande neodarwinista de Harvard Ernst Mayr, morto em 2005, sustentava a tese de que o surgimento do cérebro humano foi um evento tão extraordinário, único e inexplicável na evolução que seria estatisticamente impossível esperar que, em havendo vida em outros planetas, haveria também espécies inteligentes.

Os corolários dessas hipóteses espantosas são ainda mais espantosos. O economista Eduardo Giannetti da Fonseca trabalha atualmente na conclusão de um livraço sobre cérebro e mente que ele promete lançar no começo de 2010. O livro é uma ficção rigorosamente conduzida pela melhor ciência neurológica. Nele, Giannetti cria um personagem que se torna obcecado pelo funcionamento do próprio cérebro. Entre outras aventuras intelectuais, o personagem visualiza o escaneamento das funções cerebrais do grego Sócrates nos instantes que precedem sua execução, momento em que, a história registra, o filósofo não sentiu um pingo de medo. O exame de um organoide cerebral, a amígdala, permitiria dizer com certeza se Sócrates teve medo ou não no instante final.

O médico e pesquisador brasileiro mais próximo de ganhar um Prêmio Nobel é o paulista Miguel Nicolelis. Ele lidera, na Universidade Duke, nos Estados Unidos, o mais avançado grupo do mundo no estudo das neuropróteses, as interfaces cérebro-máquina. Nicolelis já conseguiu que um macaco movesse remotamente um braço robótico usando apenas comandos neuronais. Isso é o começo. Onde essa pesquisa vai parar? Nicolelis tem certeza de que um dia, com a naturalidade de alguém que pluga um pen drive em um computador e copia um arquivo ou programa, será possível digitalizar todas as instruções cerebrais do ser humano e gravá-las em um cérebro artificial. A alma em um pen drive? Até Francis Crick ficaria espantado.

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