O ESTADO DE S. PAULO
"O povo não quer migalha, nem cesta básica, nem esmola." Foi assim que, em 1999, Lula denunciou o Bolsa-Escola de FHC. Uma conversão completa demandou apenas três anos: na campanha que o conduziu à Presidência, Lula anunciou o Fome Zero, do qual surgiria o Bolsa-Família. O PSDB, por sua vez, exibiu-se aos eleitores de 2006 como um partido sem rumo que oscilava entre a proposta paternalista de condicionar efetivamente a concessão do benefício à frequência escolar das crianças pobres e a proposição suicida de criar "portas de saída" para os beneficiários do programa.
Há pouco, posicionando-se para a campanha de 2010, os tucanos fizeram a sua própria conversão: enterraram as críticas, diagnosticaram o Bolsa-Família como uma continuidade da política social de FHC e prometeram ampliá-lo ainda mais. Todos, agora, estão ansiosos para emitir cheques visados a potenciais eleitores.
O Fome Zero nasceu como um programa de distribuição de cupons alimentares, não de dinheiro. O Lula triunfante de 2003 proclamou que 44 milhões de famélicos aguardavam, em silencioso desespero, um gesto salvador de seu governo. Seu ministro do Combate à Fome, o agora esquecido José Graziano da Silva, exibiu a nova política como o marco zero de uma revolução que uniria a reforma agrária, o florescimento da agricultura familiar e a garantia da segurança alimentar. Num país encantado pela ascensão do retirante nordestino ao palácio dos palácios, poucos ousaram apontar a natureza farsesca daquele discurso.
No Brasil, a fome aberta é um fenômeno marginal, escrevi em outubro de 2002, acrescentando que a pobreza se manifestava essencialmente como carência de renda. O artigo concluía que o programa de Lula "fornece um poderoso instrumento de manipulação política para as elites e oligarquias regionais". A alternativa proposta era algo como o Renda da Cidadania, defendido pelo senador Eduardo Suplicy. Previsivelmente, os áulicos acadêmicos do lulismo acusaram-me de sabotar o programa da redenção dos miseráveis. Entretanto, as pesquisas do IBGE logo evidenciaram que a subnutrição se confinava a uma franja diminuta da população - e o governo inventou o conceito, tão patético quanto efêmero, de "fome gorda".
Graziano da Silva durou apenas um ano. Seu Ministério foi englobado pela pasta do Desenvolvimento Social e o programa de distribuição de cupons alimentares deu lugar ao Bolsa-Família, que distribui dinheiro vivo. A nova política nasceu pela unificação e expansão de programas sociais de FHC - e, naturalmente, os porta-vozes do oficialismo nas universidades fingiram, sem corar, que não ocorrera nenhuma ruptura entre o projeto da salvação pela cesta básica e o programa da redenção pelo cheque.
O dinheiro distribuído pelo Bolsa-Família é utilizado, prioritariamente, para cobrir custos de transportes e na aquisição de materiais de construção e eletrodomésticos. Nada há de surpreendente - nem de errado - nisso. Em sucessivos atos falhos, Lula renegou sua acusação original de que os cheques do governo constituem esmolas e crismou os críticos como defensores da transferência "para os ricos" do dinheiro "que a gente está dando para os pobres". As palavras do presidente escancaram tudo o que existe de desprezível no modelo atual do Bolsa-Família.
É um equívoco teórico e uma narrativa política retrógrada explicar a reeleição de Lula como fruto do Bolsa-Família. A vitória do presidente refletiu o ciclo de expansão da economia mundial, o crescimento econômico brasileiro, os aumentos do salário mínimo e da renda dos trabalhadores - e a incompetência do candidato oposicionista. O cheque do governo produziu votos, mas representou um fator subsidiário no resultado final. Contudo, numa democracia séria, mesmo isso seria intolerável.
A reviravolta pré-eleitoral do PSDB atesta a natureza deletéria do Bolsa-Família. Os tucanos descobriram que, no caminho rumo ao poder, não é eleitoralmente eficaz formular ideias passíveis de interpretação como uma intenção de retroagir em benefícios monetários.
Também descobriram as vantagens que poderão usufruir, no futuro próximo, das prerrogativas de reajustar valores de cheques e expandir o universo de beneficiários. A conversão oportunista sinaliza a assinatura de um contrato entre os grandes partidos. Eles decidiram conceder uns aos outros o direito de intercambiar cheques presidenciais por votos. No mesmo ato, tacitamente, impuseram à Nação a renúncia a uma política republicana de combate à pobreza por meio da transferência de renda.
O projeto de Renda da Cidadania sustenta-se sobre dois pilares. O primeiro é a proposição de que uma renda básica constitui direito universal, de brasileiros pobres e não-pobres, a ser consagrado na lei e realizado em prazos compatíveis com as disponibilidades orçamentárias.
O segundo é a ideia de criação de uma agência pública independente de gestão do programa, com a missão de universalizar os benefícios e a prerrogativa de definir valores e destinatários dos cheques segundo critérios apartidários. A Renda da Cidadania continuaria a incentivar o consumo dos pobres, mas as transferências de dinheiro perderiam o estatuto de dádiva para adquirirem o de direito. Nessa mudança de princípio se encontram tanto a sua força conceitual quanto, desgraçadamente, a sua fraqueza política.
São remotas as chances de o projeto de Renda da Cidadania prosperar. O povo "não quer esmola", como disse Lula quando ainda não se apresentava como o sucessor de Getúlio Vargas, mas as elites políticas confluem em torno da proteção de seu privilégio de dar esmola. Menos de uma década atrás havia ainda uma barragem de crítica ao clientelismo, oriunda dos intelectuais e da universidade. Isso hoje se perdeu, no labirinto da adesão ao lulismo. Os coronéis intercambiavam votos por dentaduras. Nós vivemos no tempo das dentaduras pós-modernas.