Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, julho 01, 2009

Sandra Cavalcanti Vai voltar a farra?

O ESTADO DE S PAULO
Quando a luta contra a inflação, iniciada em 1994, começou a dar seus primeiros frutos, os responsáveis pela economia sentiram que era hora de, afinal, implantar um programa que garantisse também a estabilidade fiscal. Assim, em 1998, o Congresso foi chamado a votar a proposta de lei que definia princípios fundamentais para a correta gestão dos recursos públicos. O Brasil sempre foi vítima indefesa de desperdícios, roubos, superfaturamentos, gastos públicos inúteis e demagógicos. A nova lei, que encontrava o País com as finanças saneadas, vinha completar o esforço do governo: ela tinha como objetivo fixar de forma permanente os limites para o endividamento público e para a expansão das despesas.

O Programa de Estabilidade Fiscal estabeleceu um prazo de três anos para serem feitas mudanças no regime fiscal e alcançadas as metas de estabilidade. Depois desse prazo, no entanto, era preciso que ficassem assegurados os resultados nos anos seguintes. Por essa razão, o Congresso recebeu, para discutir e votar, dois projetos decisivos: um, que definia a responsabilidade fiscal, e outro, que regulamentava as penalidades para o caso de seu descumprimento.

Foi uma bela discussão. Ampla, aberta, objetiva. Ela significou para o Brasil uma tomada de consciência e um estímulo em matéria de seriedade e eficiência no uso do dinheiro do povo. Foi um dos passos mais maduros, que nossa gente aplaudiu. Lembro-me de minha torcida, nessa ocasião, e do registro que fiz aqui, neste nosso jornal, no dia 2 de junho de l999: "A sociedade vai ganhar meios para estabelecer uma exata relação entre os impostos que ela paga e os serviços que lhe são fornecidos em troca. Ninguém vai mais poder criar despesa permanente, no Orçamento, sem que exista a correspondente fonte de recursos. Se não houver compensação, o gasto é ilegal."

Dizia eu, também, que essa lei, uma vez aprovada e bem difundida, daria ao eleitor novos critérios na escolha de legendas, partidos, candidatos e governos. O eleitor-contribuinte ganhava, ali, uma ferramenta preciosa para analisar pessoas e projetos.

Ele passaria a saber que, graças a essa lei, os governantes não poderiam mais transferir para os seus sucessores aquelas famosas dívidas devastadoras. E, mais do que isso, ele passou a saber que governos municipais e estaduais ficariam sem crédito se não fossem capazes de seguir à risca os princípios básicos da boa gestão, que a lei impunha.

Com essa lei, dizia eu naquele artigo, os bons governantes serão beneficiados. O administrador sério, comedido, prudente e honesto vai deixar de ser considerado politicamente ingênuo. O famoso tipo tocador de obras ou do rouba-mas-faz perde todas as possibilidades de se dar bem e sair de suas trapalhadas sem qualquer punição, como ainda ocorre hoje.

Dez anos já se passaram. Infelizmente, essa saudável revolução ainda não chegou a todos os Executivos do País. E o pior é que cresce, a cada dia, uma conspiração contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. É de estarrecer, sem dúvida, o espetáculo promovido por centenas de prefeitos e dezenas de governadores que vivem pelos corredores funestos de Brasília, pressionando deputados e senadores na esperança de escapar das justas penalidades previstas para os que descumpriram as exigências da lei.

Se essa lei não for revogada e for levada a sério, se os partidos não forem coniventes, se os cofres das estatais não continuarem anestesiando a capacidade crítica dos eleitores, se alguns atuais detentores de mandatos se mantiverem firmes, apoiando os valores morais que a atividade política exige, se tudo isso acontecer, acredito que muita gente graúda por aí não vai ter como arranjar meios para disputar as próximas eleições. Muitos serão penalizados pelo descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Parece até um sonho. E é.

Lamento muito, mas acho que isso não vai acontecer. Nada será cobrado desses inocentes. Eles se farão de vítimas, jogando a culpa sempre nos antecessores.

É o caso de perguntar: em que parte do planeta estavam eles, enquanto as duas leis estavam sendo discutidas? E depois, quando foram aprovadas? Vão alegar que não sabiam de nada? Vão querer um prazo maiorzinho para continuar a jogar o dinheiro do povo pelo ralo? Será que eles não sabiam que não podiam gastar mais do que arrecadavam e que a receita, para ser aumentada, exigiria aumentar impostos? Ou contrair dívidas indecentes, como a dos precatórios não pagos?

Nós chegamos a pensar que, graças à conquista da estabilidade da moeda, nenhum governante, neste País, teria mais como contar com a ajuda da famosa elasticidade que a inflação garantia. Pensamos que a farra tivesse acabado. Pensamos que, com a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, a impostura também acabasse. Que a hora da prudência e da seriedade tivesse chegado. Mas não.

Pelo que se sabe (e não adianta culpar a crise mundial...), tanto o País como os Estados e os municípios, todos estão mal de contas. Gastaram mais do que arrecadaram. Por isso querem de novo mudar a lei e voltar à farra. E o povo?

Será que o povo trabalhador do Brasil vai admitir esse retrocesso? Este povo que trabalha, produz riqueza, paga impostos e luta por bons serviços públicos, esse povo vai admitir que uma lei tão benéfica e tão oportuna venha a ser alterada, amaciada ou que tenha a sua eficácia indecentemente adiada, para encobrir a demagogia de centenas de administradores incapazes, relaxados e desonestos?

Será que a farra vai voltar? Será que vai voltar pela mão do povo? Será que já voltou? 

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