Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 11, 2009

Livros A Luz da Noite, de Edna O’Brien

DA VEJA

Paisagens da Irlanda

A estreia literária de Edna O'Brien foi marcada pela censura 
e pelo escândalo – mas hoje ela é a grande dama das letras irlandesas

Selmy Yassuda
INFÂNCIA CATÓLICA
Edna O'Brien: "Cresci sob a influência de duas mães poderosas: 
a igreja e a minha mãe de fato"

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O romance de estreia de Edna O'Brien, The Country Girls, de 1960 – ainda sem tradução no Brasil –, foi banido pela censura em sua Irlanda natal. Em um país dominado pela igreja católica, não se aceitavam a linguagem franca do livro nem as cenas sensuais envolvendo duas jovens que, depois de expulsas de um convento, tentam a vida em Dublin. No condado de Clare, onde a autora nasceu, um padre recolheu e queimou todos os exemplares que encontrou – mas a fogueira foi pequena. "Eram apenas dois livros. Nem consegui ganhar dinheiro antes da censura", brinca a autora. Tal como já aconteceu com tantos outros escritores, Edna, de 78 anos, percorreu o caminho do escândalo à consagração. A Irlanda que a censurava – hoje uma integrante cosmopolita da União Europeia – já a cobriu das devidas homenagens e prêmios. Edna O'Brien é uma espécie de grande dama da literatura irlandesa (o que não significa que sua fama seja apenas provinciana: entre seus admiradores, contam-se escritores como o americano Philip Roth). Mas a filha pródiga não voltou ao lar: prefere viver em Londres, onde está radicada desde os anos 50. Na semana passada e na retrasada, Edna esteve no Brasil para divulgar, em Paraty(leia a coluna de Diogo Mainardi) e no Rio, seu mais recente romance, A Luz da Noite(tradução de Maurette Brandt; Record; 384 páginas; 49 reais), um belíssimo drama familiar. 

Admiradora reverente do compatriota James Joyce – é autora de uma biografia breve do criador de Ulisses , Edna seguiu o exemplo do mestre: distanciou-se da terra natal para melhor escrever sobre ela. "A paisagem irlandesa, nos meus livros, é tão importante quanto os personagens", diz. Sua infância foi marcada pelas restrições religiosas e pela limitação cultural (os únicos livros em sua casa eram a Bíblia e manuais de criação de cavalos). "Cresci sob a influência de duas mães poderosas: a igreja e a minha mãe de fato", diz. A mãe, aliás, ficou chocada com a escandalosa estreia da filha escritora. Edna lembra que, depois da morte dela, descobriu um exemplar de The Country Girlsescondido em um celeiro, sob um monte de feno. Sua mãe havia riscado com tinta preta todos os palavrões e expressões que julgava ofensivos. Com fortes tintas autobiográficas, A Luz da Noite lança um olhar ao mesmo tempo duro e compassivo sobre uma típica mãe do interior da Irlanda. A dedicatória vale pelo programa literário da autora: "Para a minha mãe e para a minha terra natal".


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u 

Dilly 

Quer calar a boca aí fora? — diz Dilly. — Eu disse para 

calar a boca aí fora que a Dilly mandou! 

Diabo de corvo esse lá fora, grasnando antes mesmo de o 

dia clarear e reclamando, fuçando na palmeira que nem palmei- 

ra é, mas por alguma razão a chamaram assim. Bicho esquisito, 

solitário ou solitária, nem pinto nem criança, com seus augúrios 

e seus enigmas. 

O bicho faz Dilly se arrepiar, ah faz, e ela ocupada em guar- 

dar seus preciosos pertences por questão de segurança. Embru- 

lha seus cristais lapidados para o caso de Cornelius, o marido, 

enlouquecer a ponto de usá-los ou exibi-los na frente de Crotty, 

o operário, que os arremessaria numa cerca ou numa vala como 

se fossem latas velhas. Seus pequenos tesouros. Cada item a lem- 

brar-lhe alguém ou alguma coisa. A porcelana com o desenho 

de flores que Eleanora adorava; quando criança, ficava sentada 

em frente à cristaleira inventando histórias sobre os ramos de 

rosas e miosótis pintados com vida sobre a porcelana finíssima 

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e o prato de bolo de dois andares. A jarra de vidro, lembrança 

daquela caminhada pelo vasto cemitério no Brooklyn, no déci- 

mo segundo mês, com o homem alto e barbado, à procura de 

nomes de irlandeses falecidos entre as lápides e placas mais sim- 

ples, e de ter encontrado o túmulo de uma certa Matilda, a viú- 

va de Wolfe Tone, herói do movimento pela independência da 

Irlanda e da Rebelião Irlandesa de 1798, e de fazer uma pausa 

para prestar-lhe uma homenagem. 

Ela pede aos seus pertences que tomem conta da casa, que 

fiquem de olho em Rusheen; pede aos pratos enfeitados com 

peras e romãs, pede às xícaras branquíssimas de porcelana, 

com suas belas bordas douradas, um pouco esmaecidas aqui e 

acolá pelo roçar dos lábios — algumas trincadas pelo ímpeto de 

visitantes descuidados, como aquele louco que comia por qua- 

tro, falando sem parar sobre Maire Ruadh, sabe-se lá quem foi, 

algum assunto no qual Eleanora era versada. A filha passara a 

vida inteira entre livros e mitologias, que a desencaminharam 

desde muito cedo. 

A mala já está na entrada, amarrada com uma tira de cou- 

ro porque as fivelas de latão já estão um pouco frouxas. Sorte 

que Con precisou viajar para longe, para a cobertura das éguas. 

Dilly não quer nem choro nem lamúrias. Incrível como ele 

amolecera ao longo dos anos, particularmente nos últimos nove 

meses, e ela derrubada pela herpes, muitas vezes andando so- 

nâmbula, qualquer coisa para aliviar a dor. Numa dessas ele a 

encontrou à beira do tanque, jogando água em si mesma para 

aplacar a cólera. 

—O que foi que eu fiz de errado? — perguntava ele repe- 

tidamente, tirando e pondo o boné na cabeça, muito lento, com 

ar ausente. 

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—Nada, você não fez nada de errado — respondia ela, anu- 

lando os anos de atribulações. 

Insistiu para que o marido levasse consigo a cadela Dixie, 

pois sabia que, na hora da partida, Dixie também se deitaria no 

chão e se lamentaria como se fosse gente. 

Afofa as almofadas nas poltronas da sala do café da manhã, 

conversa com elas, conclui que a camada de fuligem atrás da 

chaminé vai funcionar como uma espécie de escudo e impedir 

que pegue fogo. Conhece os hábitos de Con, de empilhar fo- 

lhagens e troncos, louco por uma chama bem alta, perdulário 

com a madeira a ser queimada como se não houvesse amanhã. 

O grande bilhete que escreveu está colado na lareira: "Não se 

esqueça de apagar o fogo antes de ir para a cama nem de puxar 

o sofá de volta para o lugar." Por alguma razão, dá corda nova- 

mente ao relógio e o coloca no lugar de sempre, virado para 

baixo, batendo teimosamente. 

Lá fora, na ordenha, escalda os baldes, latas e vasilhas de 

leite, pois se há uma coisa que não quer sentir é cheiro de leite 

azedo, um odor persistente que a aborrece e a faz recordar sen- 

sações que não deve. 

O corvo reclamão continua na sua lenga lenga e ela respon- 

de com outro grito enquanto segue para o varal; vai pendurar 

algumas roupas, peças dele, dela, e mais um monte de paninhos 

de mesa. 

Manhã fria, a grama molhada com o que restou da geada, e, 

nas depressões do morrinho em frente, algumas prímulas bem 

precoces são reduzidas a pedaços. Engraçado como elas brotam 

num lugar e não em outro. Quando pensava em flores eram as 

prímulas que lhe vinham à mente, elas e os botões-de-ouro, mas 

agora pensava em outras coisas: tarefas, dívidas, a família, a 

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cadela Dixie, os pacotes de sopa que misturava e depois esquen- 

tava para o lanche matinal ao lado de Con; enfim companhei- 

ros, como Dixie e seu amigo Rover antes de ele ser atropelado. 

Pobre Dixie, tão sentida e desconsolada, sem querer comer du- 

rante semanas, meses, esperando o companheiro voltar. 

O vento de março sacudia tudo — as roupas que ela pendu- 

ra para secar, os pedaços de sacos plásticos e sacos de forragem 

que ficam presos no arame farpado e fazem tanto barulho —, e 

as lágrimas escorrendo em seu rosto e nariz, por causa do frio e 

pela perspectiva de ficar longe por várias semanas. Potros imun- 

dos com a lama e o estrume de onde acabaram de rolar, estru- 

me por toda parte, nas caudas e na grama que comem, os dois 

potrinhos brincalhões, suas crinas cobertas de estrume, alegres 

e logo a seguir tristonhos, seus gritos quase como balidos ao 

perceberem que a mãe saiu do seu raio de visão. Nenhuma co- 

lina ou arbusto lhe era estranho, conhecia tudo aquilo, o lugar 

onde sofrera tanto e que mesmo assim lhe era tão caro, e quantas 

vezes eles quase o perderam? O meirinho um dia demonstrava 

compaixão, dizia que lhe cortava o coração ver uma dama como 

ela numa situação tão difícil, as contas, as contas não pagas 

amarfanhadas, espetadas num prego enorme, o nome deles agora 

nas páginas da Gazette. Sim, a pobreza e os campos sendo ven- 

didos na bacia das almas, e sua filha Eleanora, a cabeça nas 

nuvens, a citar o trecho de um livro que dizia que "tudo o que 

uma pessoa precisa é de um lugar esplêndido e seguro". Ainda 

assim, as visitas dela eram como o céu, a lareira acesa na sala de 

estar e as conversas sobre estilo; nada de sair correndo para la- 

var os pratos, e sim refestelar-se e conversar, ainda que soubes- 

sem que havia coisas que não podiam ser discutidas, questões 

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privadas da vida que Eleanora levava. Como ela rezava para que 

a filha não morresse em pecado mortal, a alma eternamente 

condenada e perdida, assim como Rusheen estava quase perdida. 

Houve um tempo, um "era uma vez", em que o muro de 

calcário cinza estendia-se do portão de baixo e seguia toda a vida, 

passava os chalés e chegava até a cidade, demarcando suas ter- 

ras; mas isso ficou no passado. Terras vendidas por nada ou qua- 

se nada para pagar juros ou contas, madeira cortada nem sempre 

com a concordância do dono... O mesmo acontecia com o 

musgo do pântano: qualquer um tinha permissão para entrar e 

tirar musgo, guardar musgo e levar para casa em plena luz do 

dia. Quantas e quantas vezes estiveram a um passo de perder 

tudo aquilo? Ainda assim seu orgulho fora preservado; Rusheen 

era deles, as velhas e fiéis árvores a montar guarda, e cabeças de 

gado em número suficiente para pagar as despesas por uns seis 

meses ou mais. Sem passar fome como pessoas desafortunadas 

em outros países, reduzidas a atônitos esqueletos por chuvas, 

inundações e guerras. 

Madame Corvo ainda em seu poleiro, com seus grasnidos, 

manhã ainda fria, mas não um frio cortante como o da sema- 

na anterior, quando teve de usar polainas para suas frieiras, 

precisou arrastar o único aquecedor de quarto em quarto para 

evitar que tudo ficasse úmido, que o papel de parede rasgas- 

se, os ornamentos duros como pedra, como se estivessem quei- 

mados pelo frio. E, com uma pontada, a lembrança de quando 

encostou seu rosto no rosto de uma dama de gesso chamada 

Gala, e de repente o pensamento voltou àquele cemitério no 

Brooklyn com o homem barbado, Gabriel, e o beijo com gosto 

de neve derretida, mas, meu Deus, que fogo tinha. Gabriel, 

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o homem com quem poderia ter se casado, só que não era 

para ser. Adormecer todas aquelas lembranças era como aba- 

ter um animal. 

De certo modo estava contente por estar se aguentando, 

contente porque o Dr. Fogarty finalmente lhe conseguira um 

leito, após meses de enrolação e adiamentos, porque acreditava 

que não havia nada de errado com ela, só os nervos e os efeitos 

da herpes; explicava-lhe que a doença deixava as pessoas depri- 

midas e outras bobagens, que a herpes levava muito tempo para 

abrandar, e ela dizendo que nunca abrandava, estava sempre lá, 

pior antes da chuva, uma espécie de barômetro. Patsy, que fazia 

as vezes de enfermeira e vinha duas vezes por semana cuidar 

dela, lavava as feridas, lembrava de alguma coisa do seu tempo 

de enfermeira, que tipo de unguento passar, sempre atenta para 

que as feridas não formassem um anel em suas costas, pois esse 

círculo seria fatal. Patsy chamava-as por seu nome em latim, 

Herpes zoster, e explicava como a dor atingia a linha dos nervos, 

algo que Dilly sabia melhor do que qualquer palavra latina quan- 

do chorava noite após noite, vendo-as vazar e sangrar, quando 

nada, nenhum remédio, prece ou intervenção, podia fazer coi- 

sa alguma por ela; uma punição tão violenta que muitas vezes 

achava que uma metade do seu corpo estava se amotinando 

contra a outra, um castigo por algum crime terrível que talvez 

tivesse cometido. 

—Quanto tempo falta? — perguntava a Patsy. 

—Precisam seguir o seu curso, madame — respondia, e 

assim foi. 

Quase todas as manhãs ela se virava para olhar no espelho 

do armário, para ter certeza de que não tinham aumentado, que 

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o círculo fatal não tinha se formado. E nunca esqueceria o mo- 

mento em que Patsy soltou um grande "viva" e disse: 

—Estamos ganhando, madame, estamos indo muito bem! 

— porque as pequenas feridas tinham mudado de cor, ficaram 

mais desmaiadas, sinal de que tinham resolvido ceder e que logo 

as cascas começariam a cair. 

Depois veio o tormento seguinte, uma questão tão íntima, 

tão constrangedora que não podia ser discutida nem com Patsy 

nem com o próprio Dr. Fogarty. Pediu que acreditasse que ela 

estava pingando sangue — e que não a examinasse, mas recei- 

tasse algo que fizesse aquilo estancar, resistindo à ideia de ter 

que se despir e ser vista seminua, ou ter suas partes íntimas 

investigadas. 

—Você não vai sentir dor... só um desconforto — disse ele. 

—Não me peça, doutor, não me peça isso — implorou, e 

ele não conseguia entender os medos, até que deixou escapar 

um desabafo. — Fomos criadas na idade das trevas, doutor. 

O médico resmungou, contrariado, depois abriu um biom- 

bo meio cambeta para que ela se trocasse. 

Poucos dias depois ele foi pessoalmente até Rusheen para 

conversar em particular com Cornelius. Quando retornaram 

da sala de estar, disseram que ela teria de ir a Dublin para fi- 

car em observação. Observar para quê? Ela não era nenhum 

céu estrelado... 

Dentro de casa, usa o casaco castanho de pele de camelo e 

a boina angorá marrom, depois passa batom nos lábios, sem se- 

quer olhar no espelho, e fica atenta à buzina de Buss, o motorista 

contratado, que prometera estar lá às onze em ponto. Mergu- 

lha os dedos na fonte de água benta, benze-se repetidas vezes e 

diz à casa: 

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—Vou sair agora mas volto logo, volto logo — quando, para 

sua surpresa, Buss antecipa-se e entra na cozinha. Apanhada 

desprevenida e um pouco aturdida agora, porque sua hora 

chegou, diz, com uma efusividade quase juvenil: 

—Buss, você é o melhor homem e o melhor pastor des- 

sa terra! 

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