O GLOBO
Não é a primeira vez que o presidente Lula usa sua popularidade para perdoar um mau passo, ou para dar força a aliados envolvidos em maracutaias políticas.
Lula foi pressionado, quase chantageado politicamente pelo PMDB, por meio dos presidentes das duas Casas, senador José Sarney e deputado Michel Temer, para sair em defesa do Congresso. Alegaram, em uma reunião com o presidente, que o Congresso estava se desmoralizando e o Executivo, sem que Lula se solidarizasse, ganhava muita força mas ficava sem o apoio de sua base aliada no Congresso, que já estava ameaçando se insurgir diante de tamanho desbalanceamento do equilíbrio entre os Poderes.
A partir daí, o presidente começou a dar declarações minimizando o escândalo das passagens.
No caso do mensalão, foi dele que saiu a primeira versão de que houvera "apenas" o uso de caixa dois, coisa que sempre aconteceu nas eleições. Assim que recuperou um pouco sua popularidade, deixou de lado o constrangimento e passou a receber pessoalmente vários dos acusados. Certa vez exortou o PT a "não abaixar a cabeça", dizendo que eles não deviam nada a ninguém, que esse tipo de coisa sempre aconteceu na história política das eleições brasileiras.
Da mesma maneira, na campanha presidencial de 2006, quando veio à tona a história da compra do dossiê contra José Serra, o candidato do PSDB ao governo paulista, chamou os idealizadores da manobra de "aloprados", mas não passou disso.
Agora, volta a dizer que a distribuição de passagens por deputados e senadores não tem nada de novidade, e que não existe mal nenhum nessa prática.
Admitiu que ele mesmo já usara sua cota dando passagens para sindicalistas irem a Brasília. Como sempre faz, misturou alhos com bugalhos para confundir.
O uso de passagens para a atividade parlamentar pode ser aceito, e seria realmente o menor dos males, bastando que o assunto fosse regulamentado pela direção da Câmara e do Senado. Esse tipo de passagem, desde que justificada, poderia ter uma cota para cada Casa, e a autorização seria dada de acordo com normas aprovadas pelas Mesas Diretoras.
O que a opinião pública condena é a utilização dessa "cota pessoal" para viagens de turismo de parentes e amigos, até para o exterior e, no limite, a indústria de venda de passagens para agências de turismo.
É claro que não foi o PT que inventou esse tipo de corrupção na política, nem só o partido do governo está envolvido no mau uso do dinheiro público desta vez. Ao contrário, a maioria dos parlamentares está, de uma maneira ou de outra, metida nessa mutreta, sem diferença de coloração partidária.
M a s t a n t o o p a r t i d o quanto seu principal líder se firmaram na política nacional como representantes de uma "nova política".
Quando foi deputado federal na Constituinte de 1988, Lula pôde acompanhar de dentro a atividade parlamentar, e terminou seu mandato sem desejo de continuar deputado, alegando que havia na Câmara "300 picaretas", isto é, mais da metade dos deputados federais seus colegas usavam o mandato em benefício próprio.
Vinte anos depois, eis que Lula muda de ideia a respeito dos nossos deputados, e diz que, se o mal do país fosse apenas essa questão de passagens aéreas, não teríamos problemas. Nessa questão, temos um enfrentamento entre o que Lula chama de "hipocrisia" e o que entende a opinião pública.
Para nosso presidente, hipocrisia é a crítica generalizada contra o Congresso. Para a opinião pública, hipocrisia é defender o comportamento de nossos parlamentares como se ele nada tivesse de imoral e mesmo de ilegal, já que, conforme já foi registrado aqui na coluna, todos os especialistas em gestão pública entendem que o funcionário público não pode fazer nada que não seja expressamente permitido por lei.
Na campanha sucessória de 2002, Lula defendia a tese de que a simples chegada do PT ao poder central reduziria o nível de corrupção do país, pois seria um recado de que os hábitos políticos mudariam.
A contrapartida implícita à tese de que os "conservadores" abusaram da máquina pública nos últimos 500 anos, muito difundida entre os petistas, seria a de que os "progressistas", uma vez no poder central do país, denunciariam os abusos e puniriam quem usou de maneira ilegal a máquina pública, em vez de repetir as mesmas coisas sob a alegação de que "sempre foi assim".
Como se ficou sabendo a partir das denúncias do mensalão, os hábitos petistas não eram tão sóbrios quanto vendia sua máquina propagandística.
E as denúncias, que não eram levadas muito a sério, de que a gestão do PT à frente de prefeituras municipais já mostravam sinais de corrupção endêmica passaram a ser ratificadas pela prática do novo governo federal.
O que aconteceu é que o governo petista utilizou as práticas políticas que condenava da boca para fora, e passou a usá-los em benefício próprio, para controlar o Congresso, aprofundando as práticas em alguns casos.
Montou uma base aliada heterogênea, que nada tem a ver com um programa de governo, une partidos da direita à extrema esquerda com a maior facilidade, distribuiu cargos para seus aliados e vive de protegêlos, para que o protejam em uma eventual crise política.
Como agora, em que há no Congresso um movimento da oposição para criar uma CPI sobre a Petrobras, ou anteriormente, quando a CPI do Cartão Corporativo foi instalada.
Os gastos abusivos, o desperdício de dinheiro público, o uso político da máquina estatal fazem parte do mesmo fenômeno, o "aparelhamento" da máquina do Estado, outro velho hábito da política brasileira que no governo Lula foi levado a extremos, em vez de combatido.
E-mail para esta coluna: merval@oglobo.com.br
Entrevista:O Estado inteligente
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