Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 18, 2009

Do Outro Lado, de Natsuo Kirino

Livros
A noite pelo dia

Quatro mulheres descobrem um novo negócio: sumir
com cadáveres para assassinos. Elas são personagens
da maior autora de suspense do Japão


Marcia Tiburi

Amanda Edwards/Getty Images
BANALIDADE DO MAL
Natsuo Kirino: um romance policial e reflexivo


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Trecho do livro

Do Outro Lado (tradução de Roberto Wander Nóbrega; Rocco; 544 páginas; 57 reais) é o livro premiado de Natsuo Kirino, pseudônimo de Mariko Hashioka, a mais aclamada escritora japonesa dedicada ao romance policial no atual cenário internacional. O romance é uma espécie de conto longo sobre um crime e seus efeitos. Uma mulher jovem, mãe de filhos pequenos, assassina seu marido após ser agredida por ele. Três mulheres que trabalham com ela no turno da noite em uma fábrica de comida pronta promovem o sumiço do corpo num cuidadoso trabalho de desmembramento. A habilidade com que realizam a tarefa abre uma nova frente de trabalho para o turno do dia. Prestar serviços para assassinos e gangues sumindo com cadáveres se torna uma opção sedutora, posto que rentável. O crime como o outro lado da vida cotidiana é a aposta que conduz a narrativa.

Kirino é cuidadosa no detalhamento realista. Suas descrições de personagens presas ao cotidiano instauram uma atmosfera de banalidade. Sobre essa superfície desliza a ação que captura o leitor. Tudo está à mostra. A forma e o conteúdo realista das cenas levam a perguntar: o que deseja a escritora, ao pôr o leitor diante de um crime de autoria evidente, sem que haja um mistério por desvendar? O que poderia ser defeito da obra, no entanto, é o seu mérito maior. No modo como a escrita afunda na descrição da banalidade até mesmo da ação criminosa, o romance de Kirino mostra sua pesada gramatura. Tudo tem outro lado. Abaixo do horizonte da crítica à violência praticada contra mulheres entra em cena a capacidade das próprias mulheres de cometer violência. Abaixo do fio vermelho do crime entra o modo de conviver com ele e de usá-lo com fins pragmáticos.

Neste romance tanto policial quanto reflexivo, Kirino vitrifica a banalidade do mal. Banalidade exposta numa rede de relações em torno de dois universos que compõem um dos mais profundos véus simbólicos no romance: os universos do dia e da noite, da luz e da escuridão, correlatos comuns da vida e da morte. A vida das quatro operárias é inversa à vida das pessoas comuns. Elas trabalham no turno da noite produzindo alimento para os que vivem durante o dia. Por dormirem de dia, vivem existências alienadas. Kirino acentua o fato de que elas não participam da vida que ajudam a produzir e, quando entram nela, passam a agir como vermes no escuro. Dos questionamentos quanto à vida e suas escolhas, da percepção de que tudo está fora da ordem, dependerá o preço que pagarão e a chance de se libertarem de um ciclo estranho e familiar ao mesmo tempo e, por isso, tanto mais perverso.


LIVROS

Trecho de Do Outro Lado, de Natsuo Kirino

Turno da noite

1

Chegou ao estacionamento mais cedo que de costume. A densa e sufocante escuridão do mês de julho engoliu-a ao descer do -carro. Talvez fosse o calor e a umidade, mas a noite parecia particularmente negra e pesada. Sentindo a respiração entrecortada, Masako Katori ergueu o olhar para o céu noturno sem estrelas. Sua pele, antes gelada e ressecada pelo ar-condicionado, começou a ficar grudenta. Misturado à fumaça que vinha da rodo-via Shin-Oume, podia sentir um leve cheiro de comida frita em grandes quan-ti-dades de óleo, era a fábrica de refeições pron-tas para onde estava indo trabalhar.

- Quero voltar para casa. - Assim que o cheiro a atingiu, as palavras vieram-lhe à mente. Não sabia exatamente para onde queria voltar, mas com certeza não seria a casa que tinha acabado de deixar. Mas por que não queria voltar para lá? E para onde -queria ir? Sentiu-se perdida.

De meia-noite às cinco e meia, sem intervalo, tinha de ficar de pé ao lado da esteira transportadora, embalando refeições. O salário era bom para um trabalho de meio expediente, mas o -serviço era desgastante. Mais de uma vez, quando não se sentia bem, -ficava parada ali no estacionamento, atemorizada pela idéia do -exigente turno de trabalho que se seguiria. Uma sensação de falta de propósi-to, dessa vez era diferente. Como sempre fazia quando esse momen-to chegava, acendeu um cigarro, mas, nessa noite, -percebeu pela primeira vez que fumava para encobrir o cheiro da comida.

A fábrica de refeições prontas ficava bem no meio do -distrito de Musashi-Murayama, de frente para uma estrada que acom-panhava o muro cinzento de uma grande indústria automotiva. De resto, a área era uma seqüência de campos empoeirados e um monte de pequenas oficinas. Naquela planície, o céu -alongava-se em todas as direções. O estacionamento ficava a três minutos de caminhada da fábrica de Masako, atrás de outra fábrica agora abandonada. Não era nada além de um terreno -vazio que fora rudemen-te nivelado. As vagas do estacionamento já não tinham as mar-cas no chão, a poeira há muito as -tornara praticamente invisíveis. Os carros dos funcionários ficavam estacio-nados em uma bagunça de ângulos aleatórios pelo -estacionamen-to. Era um lugar em que -seria difícil enxergar alguém escondendo-se no meio do mato ou atrás de algum dos carros. Chegava a passar, de alguma forma, uma sensação lúgubre, e Masako observou ao redor com nervosismo enquanto trancava o carro.

Escutou som de pneus. Por um momento o capim abandonado e alto às margens do estacionamento brilhou sob a luz de faróis amarelos. Um Golf cupê conversível verde com a capota -abaixada entrou no estacionamento e sua rechonchuda -colega de trabalho, Kuniko Jonouchi, acenou com a cabeça, do banco do motorista.

- Perdão pelo atraso - desculpou-se, estacionando na vaga ao lado do desbotado Corolla vermelho de Masako. Seu modo de dirigir parecia descuidado e ela fez mais barulho que o necessário para acionar o freio de mão e fechar o carro. Tudo na vida daquela mulher era estridente e espalhafatoso. Masako apagou o cigarro com a ponta do tênis.

- Belo carro - elogiou. O carro de Kuniko fora tema de -algumas conversas na fábrica.

- Acha mesmo? - Kuniko indagou, chegando a colocar a língua para fora de tanto prazer causado pelo elogio. - O problema é que me afundou em dívidas. - Masako soltou uma risada discre-ta. A impressão que se tinha era de que o carro não era o único res-ponsável pelas dívidas de Kuniko. Ela ostentava apenas -acessó-rios de marcas famosas e suas roupas eram evidentemente caras.

- Vamos - disse Masako. Pouco tempo após o início do ano, começara a escutar um rumor sobre um sujeito estranho que anda-va rondando o caminho entre o estacionamento e a fábrica. Algu-mas funcionárias de meio expediente denunciaram que haviam sido levadas para um local escuro e atacadas, e que conse-guiram -escapar por pouco; em resposta, a empresa apenas emitiu uma circular com um alerta, aconselhando as mulheres a não cami-nha-rem sozi-nhas. As duas partiram em meio à escuridão do verão pela rua mal iluminada e sem pavimentação. À direita, uma -seqüência irregular de edifícios e casas de fazenda com jardins enormes. Não eram particularmente vistosas, mas ao menos eram um sinal de vida na área. À esquerda, por detrás de um valão, uma fileira solitária de prédios abandonados: uma fábrica antiga de -refeições e um boliche fechado. As vítimas afirmaram que o agressor as es-prei-tara por entre os prédios, e, por isso, Masako mantinha o olhar atento enquanto caminhava com pressa ao lado de Kuniko.

De um dos edifícios à direita, ouvia-se um homem e uma mulher discutindo em português; era quase certo que trabalhassem na fábrica. Além das donas-de-casa que trabalhavam meio expediente, a empresa contratava uma grande quantidade de brasileiros, com ou sem ascendência japonesa - muitos eram casados.

- Está todo mundo dizendo que o tarado é provavelmente brasileiro - Kuniko revelou, franzindo o rosto em meio a toda aquela escuridão. Masako continuou caminhando sem responder. Não fazia tanta diferença a procedência do sujeito, imaginava, não havia cura para o quanto era deprimente trabalhar naquela fábrica. As mulheres teriam simplesmente que se proteger o máximo -possível. - Dizem que é um sujeito grande e forte, que agarra as mulheres sem dizer sequer uma palavra. - Alguma coisa no tom de voz de Kuniko revelou certo desejo. Masako perce-bia em Kuniko um bloqueio, uma retenção, como uma nuvem densa obscurecendo as estrelas à noite. Por detrás das duas surgiu um som de freios de bi--cicleta. Quando viraram-se, nervosas, para olhar, viram uma senho-ra montada em sua bicicleta.

- Ah, são vocês duas - disse ela. - Oi. - Era Yoshie Azuma, uma viúva de quase sessenta cujos dedos ágeis faziam dela a funcio-ná-ria mais rápida da linha de produção. As outras -funcionárias apelidaram-na de "Capitã", fruto de um respeito carregado de rancor.

- Ah, é a Capitã. Bom-dia - disse Masako, com a voz típica de quem estava aliviada. Kuniko não disse nada, mas deu um passo para trás.

- Não comecem vocês a me chamar assim também... - Yoshie protestou, mas ainda parecia secretamente satisfeita com o apelido. Descendo da bicicleta, juntou-se às outras duas. Era uma mu-lher pequena, mas solidamente constituída num corpo -atarracado, que parecia ser o tipo ideal para trabalhos físicos. Em contraste, seu rosto apresentava traços delicados e uma aparência alva, que naquele momento flutuava quase sedutoramente em meio à escu-ridão. Talvez essa contradição fazia com que parecesse de -alguma forma infeliz e desafortunada. - Pelo jeito, estão caminhando juntas por causa de todo esse estardalhaço que eles criaram a -respeito do tarado... - adivinhou.

- Exato - disse Masako. - Kuniko ainda é jovem o bastante para servir de alvo. - Kuniko soltou risadinhas gracio-sas. Tinha vinte e nove anos. Yoshie desviou de uma poça que luzia bem fraca sob a luz sombria e virou-se para olhar para Masako.

- Você mesma ainda figura entre as candidatas - disse ela. - Qual é a sua idade, quarenta e três?

- Não seja tola - Masako censurou-a, abafando uma risada. O elogio a fizera sentir-se constrangida como quase já não ocorria mais.

- Então, você secou por completo, é isso? Ficou fria e seca? - O tom de voz de Yoshie era de provocação, mas Masako sentiu a crítica como um prego sendo-lhe cravado à cabeça. Sentia-se mesmo fria e seca, quase um réptil, enquanto serpenteava pela rua.

- Não está chegando hoje um pouco depois do seu horário normal? - perguntou, procurando mudar de assunto.

- Ah, vovó tem andado um pouco difícil. - Yoshie franziu a testa e silenciou-se. Cuidava da sogra acamada em casa. Masako agora olhava fixamente para frente, resolveu evitar mais perguntas. Conforme se afastavam dos -edifícios abandonados à -esquerda, viram vários dos caminhões brancos que entregavam as refeições embaladas nas lojas de conveniência por toda a cidade. Por trás deles, a fábrica estava visível, -brilhando fraco sob as luzes fluores-centes, como uma cidade sem noite.

Esperaram enquanto Yoshie foi ao bi-cicle-tário próximo à fábrica e depois subiram pela escadaria verde coberta com grama -artificial que acompanhava a lateral do prédio. A entrada ficava no andar de cima. O escritório, à direita e, descendo o corredor, havia a área de descanso dos funcionários e o vestiário. A fábrica situa-va-se no térreo, e elas desciam logo que se trocavam. Os sapatos precisa-vam ser retirados sobre o carpete sin-tético vermelho que ficava à entrada da instalação. A luz fluorescente fazia com que o -vermelho do carpete parecesse desbota-do, o que deixava a entra-da com uma aparência um tanto -sombria. As faces das mulheres ao seu redor também pareciam escure-cidas, e conforme olhava para suas cansadas companheiras, Masako se perguntava se também tinha aquela aparência tão ruim. Komada, a taciturna fiscal de higie-ne da empresa, estava de prontidão à frente dos cubículos onde cada uma das funcionárias guardava seus sapa-tos, e conforme passa-vam, corria-lhes às costas um rolo adesivo para remover qualquer pó ou sujeira que pudessem estar -carregando.

Elas adentraram o cômodo amplo e repleto de tatames -estirados pelo chão, que servia como local de descanso para os -empregados. Pequenos grupos conversavam depois de cada funcionário ter vesti-do seu uniforme branco, e bebiam chá ou mastigavam seus -lanches ruidosamente enquanto esperavam pelo começo do expediente. Outros encontraram cantos para se deitar e tirar um cochilo rápi-do. Dentre os quase cem funcionários do turno da noite, cerca de um terço era de brasileiros e desses, quase metade eram -homens. Estávamos bem no meio das férias de verão, por isso a -quantidade de estudantes trabalhando havia aumentado relativamente, mas ainda assim a grande maioria era de empregados de meio expedien-te. Donas-de-casa com seus quarenta, cinqüenta anos.

As três trocaram discretas saudações com amigas enquanto caminhavam na direção da saleta que usavam para trocar de -roupa, quando perceberam Yayoi Yamamoto sentada sozinha no canto. Yayoi olhou de relance para elas à medida que se aproximavam, mas não abriu seu sorriso, permaneceu curvada sobre o tatame.

- Bom-dia - Masako cumprimentou-a, e enfim ela abriu um sorriso tímido por um momento. - Parece exausta. - Yayoi confir-mou com um gesto débil de cabeça e lhes ofereceu um olhar desanimado, mas ainda assim não respondeu. Era a mais bonita das quatro. Para falar a verdade era a mulher mais atraente entre -todas do turno da noite. Seu rosto era quase perfeito. Tinha uma testa generosa, a área entre olhos e sobrancelhas bem distribuída, -nariz arrebitado e lábios carnudos. Seu corpo também, embora pequeno, era perfeito. A beleza lhe era tão proeminente na fábrica que algumas mulheres até passaram a intimidá-la. No entanto, outras tratavam-na com simpatia. Masako adotara o papel de protetora de Yayoi, talvez por serem tão diferentes. Enquanto a própria Masako procurava ao máximo viver a vida seguindo os princípios da razão e do bom senso, Yayoi parecia carregar consigo uma -enorme carga de sofrimento. Quase inconscientemente, se agarrava às má-goas do passado, desempenhando o papel de uma mulher bonita à mercê de sentimentos confusos e inconstantes.

- O que é que há? - Yoshie perguntou, cutucando seu ombro com a mão vermelha e áspera. - Não está com uma cara legal. - Yayoi sobressaltou-se com certa zanga e Yoshie virou-se na direção de Masako, que fez um sinal para que ela e Kuniko seguissem sem ela. Enfim, Masako sentou-se à frente de Yayoi.

- Está passando mal? - perguntou.

- Não, não é nada.

- Brigou de novo com o marido?

- Ficaria satisfeita se ele ainda estivesse disposto a brigar comi-go - ela disse com as feições abatidas e os olhos turvos a fitar al-guma coisa atrás de Masako. Dando-se conta de que logo teriam que assumir suas posições na linha de produção, Masako -começou a preparar o coque.

- O que houve? - indagou.

- Mais tarde eu conto - disse Yayoi.

- Por que não quer contar agora? - Masako instigou-a, olhando para o relógio da parede.

- Não, mais tarde. É uma história comprida. - Uma certa raiva surgiu por um momento no rosto de Yayoi e depois desapareceu. Desistindo, Masako levantou-se para ir trabalhar.


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