Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 18, 2009

O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto

Caso sem solução

Em O Crime do Restaurante Chinês, o historiador
Boris Fausto rememora um episódio policial dos anos
30 para refletir sobre preconceito e justiça no Brasil


Miguel Sanches Neto

UM CRIME BÁRBARO
Nos jornais de 1938, a cena dos assassinatos, os investigadores e o suspeito Arias de Oliveira


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Trecho do livro

O que leva um importante historiador a exumar uma chacina acontecida em 1938? Essa é a questão que o leitor se coloca já no início da leitura de O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto (Companhia das Letras; 264 páginas; 45 reais). Seja pelo título, pela estrutura da narrativa ou pelas ilustrações, esse ensaio histórico tem o formato dos folhetins e prende nossa atenção. O crime é apresentado já nas primeiras páginas. Um casal de chineses prospera com um restaurante próximo à Praça da Sé. Mas na manhã de Quarta-Feira de Cinzas eles e mais dois funcionários que dormiam no estabelecimento são encontrados mortos. A imprensa toda se dedica a noticiar, nem sempre com precisão, o crime bárbaro, exigindo da polícia a resolução do caso.

Em capítulos breves, Boris Fausto reconstitui cada lance da incriminação de Arias de Oliveira, um negro recém-chegado de Franca que havia trabalhado no restaurante. O que o torna o principal suspeito é o fato de ter se demitido dias antes para aproveitar o Carnaval. Num meio em que se valoriza a presença obreira do imigrante, a desconfiança recai numa pessoa identificada com a indolência e o prazer. Embora houvesse outros suspeitos, é Arias quem acaba preso. Aí está implícita a ideia do Brasil como país da preguiça, da malandragem e da festa. Um país que deve ser reprimido.

Era necessário, no entanto, provar o crime. Arias passa por um interrogatório psicológico à luz da Escola Positiva de Medicina. Mas é o clima opressivo da cultura e do cárcere que o leva a confessar tudo, embora os médicos afoitos vejam nisso um triunfo da ciência. Na ótica destes, o crime se esclarecera. Arias teria voltado ao restaurante para recuperar a colocação, pedira para dormir lá, tal como os outros empregados, e, faminto, depois de noites de farra, tivera a ideia do roubo, vendo-se obrigado a matar todos. Tal teria sido a versão oficial se não tivesse entrado em cena a União Negra Brasileira, entidade que lutava contra a discriminação racial. Ela escala um jovem advogado, Paulo Lauro, que mostra a fragilidade das provas. Ele nega as certezas científicas que transformam o jovem pacato em um perigoso facínora, devolvendo-o à sua estatura real, a de alguém em busca de trabalho.

Raul Junior
FANTASMAS
Boris Fausto: escrever o livro foi um modo de exorcizar a história, que ficou em sua imaginação desde a infância

Nessa mudança de olhar entram alguns elementos simbólicos, que o autor explora com propriedade e sutileza. Se o gosto pela festa carnavalesca é usado contra Arias, a disputa da Copa do Mundo de 1938 o ajuda. A seleção brasileira tem um herói, Leônidas, que é muito parecido com Arias, e que também sofre de discriminação. Há uma afirmação de nossa nacionalidade pelo futebol, e isso cria um ambiente propício para a mudança da opinião pública sobre o jovem acusado.

Depois de lances cinematográficos, Arias é absolvido pelo tribunal do júri. O crime nunca é solucionado. Arias volta ao anonimato e o leitor chega ao último capítulo, quando Boris Fausto dá os motivos que o levaram a eleger esse episódio. Além da possibilidade de estudar o preconceito e o começo de uma estabilização de nossa identidade, ele se reporta a uma passagem autobiográfica. Como participara do Carnaval de 1938, o crime ficou ressoando em sua imaginação desde a infância. Escrever a história é uma forma de exorcizar velhos fantasmas. E esse dado final dá um sentido maior ao livro.


LIVROS

Trecho de O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto

Capítulo 1
As vítimas e a São Paulo dos Imigrantes

Ho-Fung viera da China em 1926, cruzando oceanos, para encontrar a morte violenta em São Paulo. Antes dele chegara a São Paulo seu primo, Antônio Akui, que, sabedor de suas dificuldades, lhe forneceu passagem e colocação em um restaurante, de propriedade de João Akiau Ching, seu futuro cunhado. Ho-Fung veio acompanhado de João Ho Det Men, que foi trabalhar em outro restaurante, o da rua Wenceslau Braz número 13, de propriedade de Akui na ocasião.

Alguns anos após sua chegada ao Brasil, através de João Akiau, Ho-Fung conheceu a irmã deste, Maria Akiau Ching. Era brasileira, filha de chineses que tinham morado inicialmente no Rio de Janeiro, depois em Araraquara, no interior do Estado, transferindo-se por fim para a capital paulista em 1932. Ho-Fung e Maria passaram do conhecimento ao namoro, e se casaram em 1933.

Nesse ano ocorreu a morte da mãe de Maria, que deixou uma pequena herança - uma casa em Araraquara, vendida pelos nove filhos herdeiros. Foi com o dinheiro dessa herança que o casal instalou seu restaurante na rua Wenceslau Braz número 13, aproveitando uma boa oportunidade; o local ficara vago, pois o primo de Ho-Fung, Antônio Akui, jogador inveterado, levara o antigo restaurante à falência.

A família de Maria Akiau fazia um continuado esforço de integração no país. Seus membros se converteram ao catolicismo e optaram pela utilização de primeiros nomes usuais no Brasil, formando combinações curiosas, como a do nome do patriarca - Joaquim Akiau Ching. O fato de o "mercado matrimonial" intraétnico ser muito reduzido para os chineses também concorreu para que os filhos e filhas do casal imigrante Joaquim e Maria tendessem a casar com brasileiros, italianos, espanhóis. O casamento da filha Maria Akiau com Ho-Fung foi, assim, uma exceção.

Em mais um claro indício de inserção no meio brasileiro, a família Akiau mandou celebrar missa de sétimo dia, na Igreja do Convento de São Francisco, convidando parentes e amigos através de anúncio em O Estado de S. Paulo, de consideráveis proporções. Nele figura um anjo, de asas bem maiores do que o corpo, ajoelhado diante de uma coluna partida, como símbolo a um tempo banal e expressivo de vidas truncadas muito cedo.

Não convém, entretanto, estender a outras situações a integração da família Akiau à terra a que haviam chegado como emigrantes. Em geral, era difícil para os chi- neses adaptar-se aos costumes brasileiros, comunicar-se ou garatujar uma simples assinatura em caracteres latinos, tanto mais que, via de regra, eram pessoas de instrução elementar. Mesmo assim, faziam um esforço para se acomodar ao meio brasileiro, porque, se tinham chegado ao país com desejos de retorno, tal como ocorria com os japoneses, sabiam que o retorno integrava um horizonte distante. Poucos chegaram a atingi--lo e a grande maioria aqui ficou, seja por falta de recursos, seja porque as turbulências no país de origem desaconselhavam a volta. Tentavam aprender, bem ou mal, a língua portuguesa - não por acaso havia um dicionário no cofre de Ho-Fung -, pois, entre outros fatores, a língua era um instrumento valioso para atender os clientes de seus negócios. Negócios que giravam não só em torno dos restaurantes, formando uma rede nutrida pelo parentesco e pelas amizades, mas também dos pastéis vendidos nas feiras livres, sempre acompanhados de caldo de cana, e esfumaçadas tinturarias.

A colaboração de Maria Akiau nas atividades do estabelecimento da rua Wenceslau Braz não se limitou à contribuição financeira inicial. Tanto quanto o marido, ela tinha experiência anterior na gerência de restaurantes chineses, que a família ou compatriotas abriam e às vezes fechavam. Juntos - era opinião geral - estavam se saindo muito bem nos negócios. Para que o restaurante prosperasse, o público frequentador não podia se limitar à comunidade chinesa. Graças ao preço e à introdução de alguns pratos mais condizentes com o gosto dos paulistanos, Ho-Fung e Maria aos poucos atraíram uma clientela de empregados de escritórios, principalmente de advogados, estabelecidos na praça da Sé e adjacências, dada a proximidade com o Palácio da Justiça.

Mas mesmo antes da expansão do restaurante há indícios de boa condição do casal. Numa fotografia do casamento - por certo um momento excepcional que fugia à rotina -, Ho-Fung ostenta um smoking escuro, camisa branca de colarinho engomado e gravata-borboleta. Maria traja um longo vestido de noiva, cuja saia branca se espraia pelo chão e segura nas mãos um ramalhete de flores. Uma grinalda completa o arranjo. Os dois parecem muito sérios, não obstante tratar- -se de um momento de júbilo em suas vidas. Essa foto de uma cerimônia privada, comum a tantos outros casais, tornou-se pública por força do que aconteceria depois. E quem a contempla hoje, estampada nas páginas amarelecidas de um jornal, depois de ter visto as cenas da chacina constantes do processo do crime, tende a fundir o smoking escuro, a camisa branca, os colarinhos engomados, a gravata-borboleta, a grinalda, as flores, o vestido de noiva com as imagens dos dois corpos inertes - um estendido no cimento de um corredor escuro, em meio a trapos e garrafas vazias; o outro, estatelado no chão, ao lado da cama de casal, os bastos cabelos espalhados à sua volta.

Na década de 1930, São Paulo já não era a "cidade italiana" do início do século, e sim um centro urbano, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, em que emigrantes da Europa e da Ásia se misturavam aos velhos paulistanos e aos cabeças- -chatas, como eram chamados depreciativamente os trabalhadores que começavam a chegar do Nordeste em grande número. Nessa paisagem humana, os chineses constituíam um grupo diminuto, representado por não mais do que duzentas pessoas, quase todas provenientes da província de Cantão. Esse quadro poderia ter sido muito diverso se o ponto de vista dos defensores da introdução dos "chins" no Brasil, principalmente para substituir o trabalho escravo na cafeicultura paulista, tivesse sido vitorioso, no acre debate que se travou sobre o tema nas últimas décadas do século xix. Contra a opinião favorável à vinda dos chineses, por serem mão de obra mais barata e supostamente mais dócil do que a proveniente da Europa, prevaleceu a visão em tudo oposta. Os "coolies" - trabalhadores sem nenhuma especialização -, no imaginário dos adversários, eram homens corruptos por natureza, eivados de maus costumes, narcotizados física e moralmente pelo ópio, incapazes de suportar o trabalho braçal. Desse modo, até meados do século xx, a emigração chinesa para o Brasil foi muito residual, ficando à margem das grandes vagas emigratórias que partiram da China para o Canadá, os Estados Unidos, o Peru e Cuba.3

O fato de São Paulo ter se tornado uma cidade multiétnica não significava que seus habitantes chegassem a absorver da mesma forma as várias etnias imigrantes. Uma coisa eram os italianos, espanhóis ou portugueses, que podiam ser objeto de estereótipos, de chistes, gerados tanto pela antiga população paulistana quanto por um grupo étnico tratan- do de desqualificar o outro, mas se sentiam pertencentes à cidade. Outra coisa era gente como os "amarelos", vistos como seres exóticos e distantes.

O cinema americano contribuiu para potenciar a imagem negativa dos chineses. O típico exemplo da suprema maldade, do "perigo amarelo" encarnado num único homem, foi o dr. Fu Manchu, criado por um romancista inglês, Sax Rohmer. Ao publicar as primeiras histórias, Rohmer descreveu o insidioso dr. Fu Manchu como uma pessoa alta, magra e felina, de ombros salientes, com sobrancelhas semelhantes às de Shakespeare e uma face de Satã, crânio raspado, olhos magnéticos e alongados, de um verde de olhos de gato. O dr. Fu Manchu personificava a astúcia cruel de toda a raça asiática, acumulada em um intelecto gigante, com todos os recursos da ciência do passado e do presente, "o perigo amarelo encarnado em um único homem". Mestre do crime, o personagem desdenhava de revólveres e explosivos, utilizando membros de sociedades secretas, armados de facas, cobras peçonhentas, fungos e bacilos, aranhas negras, armas químicas, para praticar seus crimes. Em compensação, o detetive sino-americano Charlie Chan, por um tempo a serviço da polícia no Havaí, era muito mais esperto do que os policiais brancos na apuração de crimes misteriosos, apesar dos gestos lentos e do inglês com forte sotaque. Os filmes de Fu Manchu e de Charlie Chan foram exibidos em São Paulo e outras cidades brasileiras nas décadas de 1930 e 1940, atraindo sempre grande público.


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