Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 14, 2009

MILLÔR

Diário Secreto de
Humberto de Campos

Publiquei aqui, há duas semanas, a biografia de Saul Steinberg feita pelo Diário de sua correspondência com seu amigo Buzzi, durante cinquenta anos de cartas, bilhetes e cartões-postais. O Diário, diferente de uma biografia convencional, revela coisas surpreendentes.

Nesta semana li o volume (358 páginas) do Diário Secreto, como ele chama – de Humberto de Campos.

Humberto de Campos, pra quem não sabe – todo mundo –, foi o maior cronista dos anos 30. Sua leitura era obrigatória. Quando, aos 10 anos de idade, completei meu curso Primário, recebi de prêmio a biografia de Humberto de Campos. Lia-a fascinado. Vinte anos depois, já bem homenzinho, relia-a. Uma merda, uma coleção de lugares-comuns, autocondescendências, melosidades.

Nesse momento, enter, como se diz em teatro inglês, entraria em cena, jornalística e humana, Rubem Braga, excepcional figura por qualquer ângulo que se o olhasse.

Humberto de Campos desapareceu sem deixar saudade. Não voltará.

A não ser aqui, agora, com estes trechos surpreendentes de seu


DIÁRIO SECRETO.

DE 1915 a 1929

Quinta-feira, 1° de março.

Em palestra íntima, Bilac fala-me de sua velhice, dos seus 53 anos solitários.

Noto na sua palavra o pavor invencível do túmulo, da aproximação soturna do "fim". Resultado, talvez, do celibato...

Sábado, 19 de maio.

Rua Sete de Setembro, quase esquina de Gonçalves Dias, encontro Lima Barreto, que se arrasta, imundo e cabeludo. Falo-lhe do mau tempo e da chuva que vai desabar. Ele, oscilando entre uma perna e outra, respondeu: "Eu não tenho medo; quem bebe não constipa. Tens aí um níquel?".

Tiro do bolso do colete uma prata, que ele recebe sem agradecer.

Quinta-feira, 5 de janeiro.

Tarde de Academia. Encarregado da revisão do "Dicionário de Brasileirismos". A história desse Dicionário define o espírito acadêmico. Ideado há mais de vinte anos, os membros da Academia colecionavam os verbetes, e os publicavam na "Revista" da casa. Duas ou três coleções de brasileirismos foram adquiridas por alguns contos de réis. Nomeou-se uma comissão especial para trabalhar na obra. (...) E estava já o "Dicionário" na letra M, impresso, pronto, quando me veio às mãos um exemplar. Examinei algumas páginas e fiquei escandalizado. Obra da Academia, divulgada, cobri-la-ia de vergonha e ridículo.

Sexta-feira, 27 de janeiro.

Bilac, nesse tempo, bebia muito. Ele descia para a cidade entre onze horas e meio-dia, trazendo sua crônica diária para A Noticia. E começava a beber a essa hora, indo assim, a beber quase seguidamente, até altas horas da noite, às vezes até alta madrugada.

Segunda-feira, 7 de maio.

Entre os atributos da beleza feminina, um dos que mais me encantam é o cabelo. Daí o meu horror à mulher negra. Eu me sentiria, parece, desonrado para o resto da minha vida, e sentiria engulhos até a hora da minha morte, se, arrastado pelo instinto, realizasse um ato amoroso com uma mulher de cor.

O que, nestas, me parece repelente não é, todavia, a pele; é o cabelo. Aqueles fios encaracolados, retorcidos, em espiral, dão a impressão de coisa imunda, tirada a um animal abjeto e posta sobre o corpo humano menos como ornamento do que como castigo. O homem branco que beijasse a cabeça de uma preta devia lavar a boca sessenta vezes por dia, durante sessenta anos.

Quinta-feira, 10 de janeiro.

Coelho Neto me afirma: "Eu conheci um homem fiel ao pacto conjugal. Euclides da Cunha!". Pôs um cigarro na piteira longa e contou: "Uma vez, estando a mulher dele para ter criança, sentiu que a abstinência estava lhe fazendo mal. Encontrou-se comigo na Rua Sete de Setembro e falou-me do assunto, com o recato de quem trata de coisas delicadas.

‘Isso é fácil’, disse-lhe eu, ‘vamos ali’. Nesse tempo ainda havia meretrício na Rua Gonçalves Dias. Quase na esquina do Largo da Carioca, ao lado da sorveteria Maison Glacê, havia, num sobrado, uma Casa de Mulheres.

‘Sobe, que eu te espero ali na sorveteria’, disse-lhe eu, empurrando-o pela porta. Ele quis apresentar objeções, mas eu o impeli e ele subiu".

Dez ou quinze minutos depois – Neto continuou a contar – chega Euclides na sorveteria. " ‘Então, já?’, perguntei. ‘Qual, seu Neto, não pude. Opunha-se entre mim e ela a sombra de minha mulher’ ".

Quinta-feira, 11 de julho.

Leio, em um jornal de Minas, uma entrevista com a mulata que foi cozinheira de Rui Barbosa nos últimos 10 anos: "O Conselheiro não gostava da cozinha baiana".

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