A ilustração à esquerda foi pintada sobre o texto da direita,
cópia feita no século X de sete obras de um dos pais da
matemática. Com o uso de um raio X especial, os cientistas
puderam ler o texto em grego sem danificar a pintura sobreposta
Duda Teixeira
Fotos Divulgação |
Era comum na Idade Média que livros fossem raspados para o reaproveitamento dos pergaminhos em que tinham sido escritos. São os chamados palimpsestos, obras em que textos científicos e filosóficos da Antiguidade clássica foram apagados e substituídos por orações ou literatura litúrgica. Um dos mais famosos palimpsestos – uma pequena obra de 170 páginas, manuscrita em fina pelica de carneiro – acaba de ser inteiramente decifrado depois de oito anos de trabalho executado por um grupo de pesquisadores convocados pelo Museu de Arte Walters, em Baltimore, nos Estados Unidos. Por baixo do manuscrito e das iluminuras medievais, os cientistas extraíram o texto perdido de sete ensaios de Arquimedes, o matemático e inventor da Grécia antiga.
O sábio, que viveu na cidade de Siracusa 200 anos antes de Cristo, estabeleceu as fórmulas para chegar ao volume e à superfície da esfera, determinou pela primeira vez o pi, número ainda usado no cálculo da circunferência, e inventou armas para o exército de sua cidade. Sabe-se mais sobre ele do que sobre qualquer outro inventor da Antiguidade, mas boa parte não passa de lenda. Como a de que saiu nu pelas ruas de Siracusa gritando "heureca" (eu achei) depois de perceber que a quantidade de água transbordada em uma banheira é igual ao volume do corpo imerso nela. É famosa também a forma com que explicou o princípio da alavanca: "Dê-me um ponto de apoio e moverei a Terra".
Roger Viollet Collection/Getty Images |
SÁBIO DA HEURECA Arquimedes: "Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo" |
A existência do palimpsesto de Arquimedes era conhecida, mas o livro sumiu na confusão da I Guerra e só reapareceu em 1998, quando foi leiloado por 2,2 milhões de dólares na Christie’s de Nova York. A obra tinha sido desmontada por um monge de Jerusalém, em 1229. Ele raspou o texto feito por um escriba bizantino do século X, cortou as folhas ao meio e as encadernou novamente, escrevendo orações e pintando iluminuras sobre o delicado pergaminho. A primeira tentativa de desvendar o manuscrito foi realizada por um pesquisador dinamarquês em 1906. Ele estudou o livro com lente de aumento e publicou uma versão incompleta com o que conseguira decifrar.
Desta vez os cientistas consumiram quatro anos apenas para desmontar o livro sem danificá-lo. Devido à antiguidade, o manuscrito medieval também se tornou uma preciosidade a ser preservada. As páginas frágeis foram submetidas a duas técnicas de imagens. Uma delas consistiu em examinar o material com um raio X especial, de modo a registrar o ferro contido na tinta usada pelo escriba do século X. A segunda foi a digitalização multiespectral, que consiste em fotografar as páginas com comprimentos de onda diferentes, do infravermelho ao ultravioleta. O resultado foi então reorganizado no computador. "Nenhum matemático na Grécia antiga desenvolveu as conclusões de Arquimedes", disse a VEJA o especialista em história da matemática Ken Saito, da Universidade de Osaka, no Japão. "Só no século XVII é que a matemática irá além dele."