O Estado de S.Paulo - 03/06
O narcisismo do ex-presidente Lula compensa com folga o fato de "algumas pessoas" não gostarem dele, como disse há dias, numa indireta ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal, que o acusou de querer "melar" o julgamento do mensalão. A exacerbada autoestima, combinada com o senso de onipotência, o levou a afirmar, como se fosse natural nas democracias, que "não pode permitir" que um tucano volte a ser presidente. Por isso, caso a sua sucessora Dilma Rousseff não queira disputar um segundo mandato em 2014, ele se declara desde já pronto para se recandidatar ao Planalto.
Isso e muito mais, como se diz em propaganda, Lula ofereceu a um público estimado em 1,4 milhão de espectadores na Grande São Paulo, durante os 44 minutos, divididos em dois blocos, que durou a sua aparição no Programa do Ratinho, do SBT, no horário nobre da quinta-feira. Foi a sua primeira ida à TV desde que se despiu da faixa presidencial e a sua primeira entrevista na TV desde o diagnóstico de câncer na laringe, cujo tratamento o deixou roufenho, entre outras sequelas. A rigor, o termo entrevista, no sentido convencional, não se aplica. Aquilo foi um espetáculo de endeusamento, em dupla com o apresentador.
Carlos Massa, o Ratinho, é uma das muitas pessoas que gostam de Lula - e a recíproca é verdadeira. "Já comi rabada na casa dele e ele na minha", disse o ex-presidente no ar, justificando a sua presença no programa de um dos animadores preferidos das classes pobres, que começou na mídia eletrônica batendo na mesa com um porrete para mostrar o que a polícia devia fazer com os "marginais". Lula se considera um campeão na defesa dos direitos humanos, mas amizades são amizades. Ainda mais quando o amigo, pouco importa o seu caráter, lhe proporciona uma inestimável oportunidade.
No caso, a de apresentar ao povo, cobrindo-o de louvações, o candidato de primeira viagem que impôs ao PT para disputar a Prefeitura da capital em outubro próximo, o ex-ministro da Educação Fernando Haddad - chamado, na hora apropriada, a participar do show. A narrativa das atribulações por que o ex-presidente ainda passa em razão da enfermidade, com vídeos e fundo musical escolhidos para tocar os corações dos eleitores, não passou, portanto, de um açucarado aperitivo antes de serem servidos os vínculos entre o imensamente popular Lula e o candidato detentor, até aqui, de 3% das intenções de voto dos paulistanos.
A propaganda, diria o Ratinho, foi escrachada. Haddad, profetizou o seu patrono, "vai passar para a história como uma pessoa que colocou mais pessoas no ensino público", referindo-se ao ProUni. Como o script foi acertado de antemão, rolou um vídeo com a história da filha de um pedreiro que chegou à faculdade graças à iniciativa. A encenação continuou com o apresentador perguntando ao candidato o que um prefeito pode fazer pela saúde e este respondendo que terá um "programa de gestão" para o que seria "o problema número um de São Paulo".
Lula e Haddad começaram assim a fazer o que Lula e Dilma fizeram em 2010 - propaganda eleitoral antecipada. Pela lei, a campanha, nas ruas e na internet, só pode ter início a três meses da votação. Curiosa, a legislação brasileira. A partir de então, as emissoras de rádio e TV ficam proibidas, entre outras coisas, de "dar tratamento privilegiado" a candidatos. Antes, logicamente, podem, como o Ratinho se esbaldou de fazer anteontem - pela bizantina razão de que aqueles só passam a existir ao serem escolhidos em convenções partidárias. Estas, por sua vez, não podem se realizar antes de determinada data (10 de junho, no caso das eleições municipais deste ano).
Partidos são associações civis e, como tal, deviam ter o direito de escolher os seus candidatos quando bem entendessem - dentro de um prazo que levasse em conta o tempo necessário à inclusão dos respectivos nomes nas cédulas eletrônicas. A camisa de força, além do mais, é uma hipocrisia. Cria a ficção de que, por exemplo, Fernando Haddad poderá não ser o candidato do PT nem José Serra, do PSDB. Disso resulta esse ente dissimulado chamado "pré-candidato". É mais do que tempo de liberar o processo.