O Estado de S.Paulo - 17/06
Nesta minha tão curta passagem por Londres, acho que, voltando do centro para o hotel, não houve dia em que o motorista do táxi deixasse de parar num tráfego de repente lento, para comunicar que nos atrasaríamos um pouco, porque estava havendo uma manifestação de rua. Da primeira vez, era um animado cortejo dos Soldados de Jesus, composto de uma multidão de peles e roupas de todas as cores, marchando, pulando e dançando atrás de alguns carros de som, dentro dos limites de cordas que lembram as que, no Brasil, isolam blocos de carnaval. O som às vezes parecia também de carnaval, com um batuque animado, interrompido de quando em quando por pregadores que, das plataformas dos carros, arengavam para os seguidores e a plateia da rua.
Ninguém buzinava ou, aparentemente, reclamava, inclusive o motorista. Em primeiro lugar, a manifestação estava programada e ele se esquecera de verificar isso, antes de sair para trabalhar. Em segundo lugar, todos tinham o direito de expor e defender suas ideias e convicções de forma ordeira. Ele mesmo nunca participara de uma manifestação, mas participaria, se visse necessidade. Talvez, se algum dia um governante resolvesse propor a proibição de uma crença ou convicção ideológica, ele saísse com os Soldados de Jesus, defendendo a liberdade de todos. Além disso, finalizou, o desfile não deveria tomar mais do que uns quatro minutos ali. Eu também não reclamei, pensando em como, se morasse em Londres, certamente participaria de manifestações, notadamente, como no caso do motorista, as que defendessem a liberdade.
Dentro de quase exatamente quatro minutos, a manifestação se encerrou. Devia haver mais policiais discretamente por ali, mas só vimos uma meia dúzia, de ambos os sexos, sem nervosismo, sem armas, capacetes, coletes à prova de balas ou aparelhos repressivos e às vezes sorrindo e conversando com os participantes. Na rabada do cortejo, em motos de cores alegres e suaves, mais dois ou três, visivelmente despreocupados e cumprindo burocraticamente suas obrigações. E assim ficamos, retribuindo os beijinhos que os Soldados de Jesus, principalmente as muitas crianças, lançavam para nós e logo, depois de acenarmos um bye-bye na direção dos manifestantes, partimos para o hotel.
No dia seguinte, creio que na mesma altura do centro, nova parada.
"Manifestação?", disse o motorista. "Oh, meu Deus, espero que não sejam os gays novamente."
Por que isso, ele era contra os gays? Ele quase se ofendeu. Contra os gays? Não havia razão nenhuma para ser contra os gays, considerava isso inadmissível. Não, senhor, era apenas porque as manifestações dos gays costumavam ser bem maiores e tomariam muito mais tempo para passar que a maioria das outras. Mas agora via que não eram os gays, eram os sikhs, membros de uma religião da Índia, que exigiam justiça para com seus fiéis, perseguidos na terra natal. E, de fato, num instante a rua se transformou num rio de turbantes alaranjados e adereços dourados, enquanto homens, mulheres e crianças desfilavam circunspectamente ao lado do táxi, exibindo em silêncio seus cartazes de protesto.
Perto do hotel, fica Hyde Park, um dos maiores parques urbanos do mundo. Sua beleza e suas atrações são difíceis de descrever, mas não foi por isso que, no domingo passado, resolvi dar um passeio por lá. Melhor dizendo, não fui passear, fui visitar o Speaker's Corner, porque achei que a visita era um bom complemento para a experiência das passeatas. Muita gente já ouviu falar do Speakers Corner, cujo nome pode ser traduzido como "Canto dos Oradores". Há similares em Londres e em outras cidades da Inglaterra e do mundo, mas o de Hyde Park é de longe o mais expressivo e famoso. Não fazem lá concursos de oratória; vê-se e ouve-se gente fazendo discursos.
Qualquer pessoa, inclusive turistas estrangeiros, pode ir ao Speakers Corner, geralmente levando uma plataforma que pode ser de um caixote vazio a uma escada dobrável, para falar o que lhe der na veneta ou o que considerar um recado essencial ao mundo. Basta então subir no caixote e discursar. Os oradores são dezenas e o público, numeroso e participante, de vez em quanto entra em debates exaltados, envolvendo oradores e aparteadores. E a polícia, sempre discreta, comparece, mas não para reprimir ou censurar os oradores e debatedores, mas para garantir que ninguém cerceie a palavra de ninguém ou haja violência, o que, aliás, raramente acontece. Alguns até põem o dedo na cara do oponente, mas não se parte para o sopapo ou o xingamento chulo.
Pode-se falar tudo no Speakers Corner, é como se seus oradores tivessem imunidade parlamentar, não para dispor de foro especial e outros privilégios, mas para expor suas verdades, seus sonhos e revoltas, sua visão do mundo, da política, da religião e do que mais queiram. Pode-se advogar a abolição da monarquia ou do parlamento, a reforma da ortografia, o fechamento do país aos imigrantes, a deportação de todos os carecas, a obrigação de casais sem filho adotarem uma criança, a inclusão de carne de lebre na merenda escolar, a criação de cursos oficiais para gagos e fanhos, a importação de camelos, a instituição de modelos compulsórios de escovas de dentes, qualquer coisa mesmo. Ninguém por causa disso é preso, perde o emprego público, toma tiro ou é perseguido. Simplesmente foi a Hyde Park, deu seu recado, lavou a alma, desabafou, disse o desaforo às autoridades que estava entalado na garganta e voltou para casa em paz. Não é nem de longe a mesma coisa que postar insultos anônimos na internet, é quase um misto de psicanálise com ativismo cívico. Saí cedo, o ambiente ainda borbulhava. Saí porque inveja deprime um pouco.
Entrevista:O Estado inteligente
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