Em livro, o ex-presidente FH diz que a diferença ideológica entre petistas e tucanos é 'pequena e simbólica'
ENTREVISTA Fernando Henrique Cardoso
Em seu novo livro “Xadrez Internacional e Social-Democracia”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso discorre sobre as transformações mundiais das últimas décadas para destacar como os programas de bem-estar social típicos da social-democracia foram aplicados por governos de todas as orientações políticas. Quando a discussão chega ao Brasil, ele busca derrubar uma tese petista: a de que o governo Lula é “do povo” e o governo FH foi “neoliberal”. Chama o PT e o presidente Lula de “social-democratas à moda latino-americana”.
As críticas de FH não poupam o candidato de seu partido, José Serra. Para ele, a campanha presidencial foi sequestrada pelos marqueteiros, os discursos dos principais candidatos se uniformizaram e não há debate intelectual sobre o Brasil do futuro: “São só imagens, imagens, e não se acha nada. Não tem política”.
Gilberto Scofield Jr.
O GLOBO: Qual é, afinal, o papel da social-democracia no xadrez internacional?
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: O bem-estar do continente e do mundo em parte se deve às políticas social-democratas, que acabaram sendo absorvidas como políticas de Estado. Não é tanto o Estado produtor, mas o socialmente provedor, que ainda tem um efeito enorme em toda a Europa Ocidental.
E aqui?
FERNANDO HENRIQUE: Nenhum partido aqui, durante esta campanha eleitoral, fala em social-democracia. Nem o PSDB, cujo nome leva a socialdemocracia.
E muito menos o PT, que tem horror, ou pelo menos tinha, historicamente. Hoje, o partido pratica a social-democracia, mas ele tinha horror ideológico, porque achava que não era revolucionário.
As políticas atuais de transferência de renda não são políticas da esquerda típica?
FERNANDO HENRIQUE: O mais curioso é que essas políticas, essas bolsas todas, foram desenhadas pelo Banco Mundial.
Não são políticas que vêm da esquerda. Mesmo as teorias do Suplicy de renda mínima sempre foram apoiadas pelos economistas mais liberais.
Aqui, ninguém nem fala se é liberal ou não, mas o fato é que 15 países da América Latina aplicam essas políticas. O ideal não é prorrogá-las ad infinitum.
É você criar emprego, educação e saúde. Não se pode deixar de lado as universais políticas europeias de bem-estar. Então, tem que se ter uma combinação entre políticas universais e políticas específicas. Está acontecendo isso no Brasil. Atabalhoadamente, mas está acontecendo.
E o resultado é positivo.
Mas a utilização desses programas ocorre hoje independentemente da natureza política dos governos.
FERNANDO HENRIQUE: Isso é o mais interessante. Essas políticas de inspiração socialdemocrata passaram a ser patrimônio (dos governos).
Em seu livro, o senhor diz: "Nas correntes de esquerda latinoamericanas, a questão democrática sempre foi minimizada pelo desafio maior do crescimento econômico e, sobretudo, pelo da redução das desigualdades". A julgar pelo que acontece na Venezuela e, em menor escala, na Bolívia e no Equador — e até mesmo na Argentina — essa concepção ainda persiste, certo?
FERNANDO HENRIQUE: O PT e o Lula eram um pouco assim.
No passado, a questão fundamental para eles era o trabalho. Depois, com o tempo, eles evoluíram. Hoje, são social-democratas à moda latinoamericana. Todos nós somos, e a diferença ideológica é pequena e simbólica. O que ocorre na Venezuela e na Argentina são escorregões democráticos fenomenais. Mas isso eu não chamo de socialdemocracia, porque a socialdemocracia aceitou o mercado com limite, a democracia como valor e a necessidade imperativa de políticas sociais para melhorar a qualidade de vida da população.
E o que a América do Sul vive hoje, afinal?
FERNANDO HENRIQUE: Esses regimes são uma espécie de recaída num estatismo com certo autoritarismo. Acreditam na supressão do movimento da sociedade como motor.
E na crença de que o Estado ou o partido são o motor, minimizam o mercado, minimizam a democracia e fortalecem o Estado, numa espécie de capitalismo burocrático. É curioso que nenhum deles propõe realmente o socialismo.
Ninguém propõe o controle social dos meios de produção e nem mesmo se fala em classe operária.
Mas, em alguns países, há uma tentativa de controle do Estado sobre os meios de comunicação.
FERNANDO HENRIQUE: É verdade, mas note que é pelo Estado, não é pela sociedade.
No livro, o senhor afirma: "Com o tempo, mantidas as regras do jogo, haverá uma distinção cada vez maior entre as democracias capazes de oferecer resultados concretos à população, as democracias formais tradicionais e os regimes baseados na discricionaridade dos chefes de Estado ou do partido dominante, tenham eles ou não preocupações sociais mais fortes". Onde se insere o Brasil?
FERNANDO HENRIQUE: Acho que estamos no primeiro grupo. O problema é nos mantermos ali. E que não tenhamos tendências regressivas.
Porque há surtos. Nós caímos neste primeiro grupo porque o mercado brasileiro é forte, assim como as empresas e a sociedade.
Tanto é que, uma vez no poder, o PT virou social-democrata.
Não assume que é.
No capítulo seis do livro, o senhor faz enfática defesa do Programa Nacional de Desestatização, das agências reguladoras e da profissionalização das estatais, três itens que não apenas per deram impor tância no governo atual, como vêm sendo ferozmente criticados pelos partidos da situação na campanha eleitoral.
FERNANDO HENRIQUE: Perderam importância.
As agências reguladoras acabaram.
E o que está acontecendo na área financeira governamental, advindo disso, é uma coisa complicada. Como você quer financiar o pré-sal, o trem-bala, (a usina de) Belo Monte, dar aumento de salário, financiar o BNDES com o Tesouro em operações subterrâneas, tudo ao mesmo tempo? Vão criar problemas no futuro.
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'Precisamos pensar as mudanças no Brasil'
O senhor comenta no livro a necessidade de o Brasil dar a virada que vai levá-lo a uma outra etapa de desenvolvimento.
Qual a mensagem?
Não são políticas que vêm da esquerda. Mesmo as teorias do Suplicy de renda mínima sempre foram apoiadas pelos economistas mais liberais.
Aqui, ninguém nem fala se é liberal ou não, mas o fato é que 15 países da América Latina aplicam essas políticas. O ideal não é prorrogá-las ad infinitum.
É você criar emprego, educação e saúde. Não se pode deixar de lado as universais políticas europeias de bem-estar. Então, tem que se ter uma combinação entre políticas universais e políticas específicas. Está acontecendo isso no Brasil. Atabalhoadamente, mas está acontecendo.
E o resultado é positivo.
Mas a utilização desses programas ocorre hoje independentemente da natureza política dos governos.
FERNANDO HENRIQUE: Isso é o mais interessante. Essas políticas de inspiração socialdemocrata passaram a ser patrimônio (dos governos).
Em seu livro, o senhor diz: "Nas correntes de esquerda latinoamericanas, a questão democrática sempre foi minimizada pelo desafio maior do crescimento econômico e, sobretudo, pelo da redução das desigualdades". A julgar pelo que acontece na Venezuela e, em menor escala, na Bolívia e no Equador — e até mesmo na Argentina — essa concepção ainda persiste, certo?
FERNANDO HENRIQUE: O PT e o Lula eram um pouco assim.
No passado, a questão fundamental para eles era o trabalho. Depois, com o tempo, eles evoluíram. Hoje, são social-democratas à moda latinoamericana. Todos nós somos, e a diferença ideológica é pequena e simbólica. O que ocorre na Venezuela e na Argentina são escorregões democráticos fenomenais. Mas isso eu não chamo de socialdemocracia, porque a socialdemocracia aceitou o mercado com limite, a democracia como valor e a necessidade imperativa de políticas sociais para melhorar a qualidade de vida da população.
E o que a América do Sul vive hoje, afinal?
FERNANDO HENRIQUE: Esses regimes são uma espécie de recaída num estatismo com certo autoritarismo. Acreditam na supressão do movimento da sociedade como motor.
E na crença de que o Estado ou o partido são o motor, minimizam o mercado, minimizam a democracia e fortalecem o Estado, numa espécie de capitalismo burocrático. É curioso que nenhum deles propõe realmente o socialismo.
Ninguém propõe o controle social dos meios de produção e nem mesmo se fala em classe operária.
Mas, em alguns países, há uma tentativa de controle do Estado sobre os meios de comunicação.
FERNANDO HENRIQUE: É verdade, mas note que é pelo Estado, não é pela sociedade.
No livro, o senhor afirma: "Com o tempo, mantidas as regras do jogo, haverá uma distinção cada vez maior entre as democracias capazes de oferecer resultados concretos à população, as democracias formais tradicionais e os regimes baseados na discricionaridade dos chefes de Estado ou do partido dominante, tenham eles ou não preocupações sociais mais fortes". Onde se insere o Brasil?
FERNANDO HENRIQUE: Acho que estamos no primeiro grupo. O problema é nos mantermos ali. E que não tenhamos tendências regressivas.
Porque há surtos. Nós caímos neste primeiro grupo porque o mercado brasileiro é forte, assim como as empresas e a sociedade.
Tanto é que, uma vez no poder, o PT virou social-democrata.
Não assume que é.
No capítulo seis do livro, o senhor faz enfática defesa do Programa Nacional de Desestatização, das agências reguladoras e da profissionalização das estatais, três itens que não apenas per deram impor tância no governo atual, como vêm sendo ferozmente criticados pelos partidos da situação na campanha eleitoral.
FERNANDO HENRIQUE: Perderam importância.
As agências reguladoras acabaram.
E o que está acontecendo na área financeira governamental, advindo disso, é uma coisa complicada. Como você quer financiar o pré-sal, o trem-bala, (a usina de) Belo Monte, dar aumento de salário, financiar o BNDES com o Tesouro em operações subterrâneas, tudo ao mesmo tempo? Vão criar problemas no futuro.
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'Precisamos pensar as mudanças no Brasil'
O senhor comenta no livro a necessidade de o Brasil dar a virada que vai levá-lo a uma outra etapa de desenvolvimento.
Qual a mensagem?
FERNANDO HENRIQUE: Vamos trocar os recursos do présal por neurônios. Vamos educar, porque, se não tivermos gente com capacidade criativa, não temos como competir no mundo do futuro. Acho que temos chance, mas a virada vai depender menos do motor da economia, que já temos, e muito mais de coisas menos perceptíveis, como segurança, jurídica e pessoal, aperfeiçoamento das instituições políticorepresentativas, melhora na governança do país, fortalecimento dos órgãos regulatórios, reforma educacional com mudança no que se ensina. Ainda falta uma compreensão mais clara do que os americanos chamam de tipping points, aqueles pontos que, mexendo ali, desencadeiam processos cumulativos. Precisamos pensar as mudanças no Brasil.
E por que não se está discutindo isso na campanha?
E por que não se está discutindo isso na campanha?
FERNANDO HENRIQUE: O que você tem hoje é uma espécie de camisa de força, criada pelas campanhas passadas, que é a obrigatoriedade de fazer pesquisas, saber o que as pessoas querem e repetir na campanha os pontos que o povo quer. Todo o esforço dos marqueteiros é não discutir problemas que possam dividir. E toda a discussão intelectual divide. Então, é um teatro onde as pessoas vêm devidamente maquiadas, fantasiadas, para dizer, como se fossem ventríloquos, aquilo que se acha que o povo quer ouvir. Cadê a liderança política? Com liderança, você não tem que repetir o que os outros querem. Você tem que convencer os outros da importância dos seus valores. Tenho dito isso para meu candidato, o Serra, que ele tem condição de falar na TV o que acha. Porque as pessoas não estão mais acostumadas a saber o que os outros acham. Ninguém acha nada. No fundo, todos os discursos ficam iguais. São só imagens, imagens, e não se acha nada.
Não tem política.
Não tem política.