O Globo - 12/08/2010
No longo tempo da inflação descontrolada, formaram-se no Brasil duas correntes: uma dizia que a inflação era a inimiga principal e que, sem eliminá-la, o Brasil não teria futuro. A outra sustentava que o país deveria se preocupar com políticas de crescimento, inclusive e especialmente com gastos públicos e estatais, podendo-se dar um jeito nessa questão, secundária, dos preços. Que jeito? Tabelamento definido pelo governo, acordos entre patrões e empregados, ameaças a alguns supermercados.
No lado mais sofisticado desse projeto de conviver com a inflação, nasceu a correção monetária, para "neutralizar" o fogo do dragão. Se todos os ativos, preços e salários fossem igualmente corrigidos, ficava todo mundo na mesma, mesmo que os valores nominais mudassem todo dia.
Acontece, porém, que não é possível corrigir tudo ao mesmo tempo, pelo mesmo indexador. Para simplificar: preços podiam ser remarcados todos os dias; salários, na melhor hipótese, mensalmente. Se você colocasse 100 cruzeiros no banco, não tinha correção. Se aplicasse um milhão, ganhava a correção plena.
A correção monetária acabou, assim, multiplicando os efeitos perversos da inflação: quanto mais dinheiro a pessoa tinha, mais tinha como ganhar da inflação; pobres e assalariados pagavam a conta. A correção acabou sendo uma solução engenhosa para uma economia avacalhada.
Quando o pessoal que considerava a inflação como o obstáculo maior conseguiu emplacar o Real, em 1994, a tese se demonstrou na prática. Enquanto caía a inflação - de inacreditáveis 2.447%, em 1993, para o também inacreditável índice de 1,6% em 1998 - o salário real tinha ganhos sucessivos, até atingir seu maior valor em 1999.
E como a inflação acabou? Por uma combinação de imaginação criadora - para acabar com a ampla e espalhada indexação dos preços - com ortodoxia (âncora cambial, ajuste de contas públicas, responsabilidade fiscal, saneamento de dívidas dos Estados, privatizações, liquidação e/ou capitalização de bancos públicos reformados).
E mais: em vez de tabelamento e controle de preços, liberdade de mercado. Em vez de fechamento de mercado local, abertura às importações, que forçaram o produtor local a derrubar preços e melhorar a qualidade.
Mas por que estamos tratando desse passado? Porque ele está presente no debate atual em torno de uma questão crucial: por que os juros continuam tão elevados no Brasil? Como derrubá-los?
Há duas correntes. Uma coloca a culpa no que considera uma exagerada ortodoxia neoliberal do Banco Central. Por essa miopia ideológica, o BC manteria juros muito acima do que seria necessário para conter a inflação. Ou então, mais grave que isso, o BC manteria juros elevados simplesmente para turbinar os lucros dos bancos e dos especuladores do mercado financeiro global.
Por isso, diz esse pessoal, o BC não pode ter autonomia. Independente, o BC eleva os juros.
Para essa turma, portanto, basta uma decisão política do presidente da República determinando ao BC que reduza a taxa básica de juros de imediato. Com isso, segue a explicação, se resolve de tabela um outro problema, o das contas públicas. Como a despesa com juros é muito pesada, reduzindo-se a taxa de juros que incide sobre os títulos da dívida pública, o gasto do governo federal cairia abruptamente, sobrando dinheiro para outros programas e investimentos.
Ou seja, é uma coisa muito fácil de fazer, não exige sacrifício algum e dá um baita benefício.
É a mesma postura em relação à inflação do passado. Também essa corrente dizia que não precisava fazer nenhum sacrifício, nenhuma reforma monetária, nada de controle de gasto. Bastava o governo forçar o crescimento econômico que o aumento da produção derrubaria a inflação.
Espantam o viés antimercado e uma atitude de quem não se manca. Se fosse tão simples, será que alguém, em algum país, já não teria feito? Ou mesmo aqui. Qual presidente não adoraria derrubar os juros?
Também espanta a cegueira em relação ao mundo. Dizem aqui que o BC não pode ser autônomo (ou independente) porque, nessa condição, tende a elevar juros.
Ora, é o contrário: BCs independentes, na lei, praticam juros mais baixos.
Dizem também aqui que a meta de inflação tem de ser mais alta - os nossos 4,5%, para permitir mais crescimento. Mas os países que têm meta mais baixa combinam menos inflação, menos juros e mais crescimento.
O que nos leva à outra corrente, que se pode chamar amplamente da turma do Real. Hoje, esse pessoal sustenta que há duas providências imediatas para derrubar os juros no Brasil:
1. Fixar em lei a autonomia do Banco Central e reduzir a meta de inflação;
2. O governo federal iniciar um programa de médio prazo de redução do gasto público, também definido em lei, determinando que a despesa cresça sempre menos que a expansão da economia. Isso reduziria o tamanho do Estado e permitiria diminuir a carga tributária.
É mais difícil, mas também se considerava impossível (ou desnecessário) acabar com a inflação no Brasil.
Entrevista:O Estado inteligente
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