O GLOBO
Acabo de fazer o primeiro reconhecimento aqui da Denodada Vila de Itaparica.
Os inexperientes talvez imaginem que, havendo nascido nela e voltando todos os anos, eu não teria novidades a encontrar.
Trata-se de um equívoco desculpável, mas, não obstante, merecedor de correção. Na verdade, se eu fosse contar todas as novidades, não teria espaço. Não me refiro aos finados na minha ausência, porque estes requerem conversas minuciosas sobre as qualidades de cada um, além da rememoração de seus feitos mais notáveis e da recapitulação dos últimos dias antes do fatal desenlace. Bem verdade que não temos mais narradores como os de antigamente, capazes de mesmerizar a plateia com a narrativa minuciosa de tremendos embates com a Grande Ceifadeira, ocorridos entre itaparicanos que se recusavam a morrer antes do próximo jogo do Bahia, como já aconteceu com tantos que perdi a conta. Mas as reportagens locais continuam com excelente qualidade jornalística e, devagar para não ter congestão emocional, vou me inteirar das últimas.
Não sem antes, é claro, contar a viagem, que pode não ter sido nenhuma expedição ao Ártico, mas teve grandes momentos de emoção, a começar pelo suspense do voo entre o Rio e a Bahia. A decolagem estava prevista para as nove horas da manhã. Já na sala de embarque, olhei o relógio e notei, com algum sobressalto, que já passava das nove e o voo não tinha sido chamado, certamente por causa da cerração no Galeão. Mas, por outro lado, bem que eu podia ter-me distraído e perdido a chamada, até porque o serviço de som agora se dirige ao público num dialeto da Baixa Eslobóvia, com algumas palavras em português intercaladas.
Dei uma olhada no monitor de partidas.
O voo, se bem me lembro, era descrito como "alterado". Se não era isso, era parecido e, como desconhecia essa categoria, fiquei apreensivo. Voaríamos num tecoteco adaptado para grandes distâncias? O avião estaria sob o efeito de algum psicotrópico? Um pouco nervoso, procurei um balcão de informações da companhia, que estava acontecendo? Ah, nada, aquela palavra queria dizer que o voo fora cancelado. Mas por que não avisaram? — Ah, não sei — disse o rapaz do balcão. — Nós pedimos para avisar.
— E avisaram? — Não tenho certeza, ninguém entende o som. Mas o senhor vai para Salvador? — Vou, ou pelo menos ia. Como é que eu faço? — O senhor procura aquele funcionário ali, ó. Aquele ali, no meio daquele bolo de gente. O que está sacudindo um monte de papeizinhos na mão, aquele mesmo.
Depois de vencer a concorrência resmungando cabalisticamente "eu sou idoso" e conseguir falar com o rapaz dos papeizinhos, na verdade cartões de embarque para os sortudos que adivinharam o cancelamento do voo, descobri que seria embarcado num avião procedente de Buenos Aires. Estou ferrado, pensei, agora vou cair na malha de proteção do Ministério da Saúde, tomara que não me botem em quarentena, eles vivem avisando que não estão para brincadeira. Mas esqueci de que a gente pode confiar no governo, claro que dentro das circunstâncias nacionais, ou seja confiar em que ele está sempre loroteando, não tem erro.
Não havia fiscalização nenhuma e muitíssimo menos ameaça de quarentena, embora, pelo pouco que entendo de eslobóvio, o sistema de barulho do Galeão fizesse inúmeras advertências. Achei meio esquisito sentar-me ao lado de uma moça usando máscara, como pareciam estar todos os passageiros vindos da Argentina. Pronto, o avião não passava de uma enorme incubadora de vírus, prestes a engolfarme numa gripe que poderia me levar ao túmulo. Logo eu, que, depois dos conselhos do governador Serra, passei a evitar a companhia de porquinhos e porcões e, tanto no Rio quanto em São Paulo, atravesso a rua só para não me bater com um porco gripado. O destino é implacável. Desci em Salvador já sentindo os primeiros sintomas, embora, justiça seja feita, a mão do Ministério da Saúde se fizesse presente. Depois de selecionados os passageiros na base dos berros de "quem veio da Argentina aê!", funcionárias também de máscara estavam na saída. Como eu viera no mesmo avião que os mascarados, mas não estivera na Argentina, ninguém me chamou para nada e me senti um pouco discriminado.
O Ministério não aconselhara a evitar recintos fechados, para reduzir a exposição ao contágio? Bem, tem que se prestar atenção, ele menciona recintos e avião não deve ser recinto, vai ver que é isso.
Já na ilha, voltou a preocupação.
Mal me acomodei, dirigi-me ao centro da cidade, mais precisamente ao bar de Espanha. Sim, eu tinha corrido o risco de ser infectado, mas o importante mesmo era a possibilidade de que, pela ação insidiosa das Parcas, eu viesse a ser o introdutor da gripe suína em minha terra. Era imperioso advertir a coletividade sobre o possível perigo que minha presença significava e fiquei aliviado quando o primeiro que encontrei foi meu grande amigo Gugu Galo Ruço.
— Não há nenhum motivo para preocupação — me disse ele, quando o pus a par de meus receios. — Não esquente, você está em Itaparica.
— Eu sei, mas nem Itaparica é imune a esse vírus.
— Aí é que você se engana. Nós não somos imunes, mas rechaçaremos o vírus. Existe terra mais patriótica do que Itaparica? — Não, não existe.
— Pois então? — disse ele. — Nós botamos o nosso vírus para liquidar com o deles. O nosso é o vírus do Ipiranga, está no Hino, não esquente.