VEJA
Depois da queda do casal K
Eleições legislativas na Argentina consagram os políticos
que vão ficar com a herança maldita da era Kirchner
Thomaz Favaro
Cézaro de Luca/EFE e Daniel Garcia/AFP |
A ARGENTINA DISSE NÃO Néstor e Cristina Kirchner fizeram das eleições legislativas um referendo sobre o "estilo K" de governar. A resposta de sete de cada dez eleitores foi votar na oposição |
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Durante seis anos as urnas foram o porto seguro de Néstor e Cristina Kirchner. O marido chegou à Presidência numa eleição da qual seus principais adversários desistiram, em 2003. Quatro anos depois, com a popularidade em alta, ele elegeu a mulher com 45% dos votos. Em sucessivas eleições, o casal manteve folgada maioria no Congresso. Tudo isso é passado. No domingo 28, o casal sofreu sua primeira derrota eleitoral. Um verdadeiro massacre. Sete em cada dez argentinos votaram na oposição nas eleições que renovaram parte da Câmara dos Deputados e do Senado. O casal K, como é conhecido, perdeu a maioria nas duas Casas do Congresso. Até na província de Santa Cruz, que Néstor governou por doze anos, a dupla foi derrotada. Daqui em diante, para manter a governabilidade, como se diz em Brasília, o casal presidencial terá de começar a negociar – palavra até então inexistente em seu vocabulário político. "É um ciclo político que se encerra na Argentina", disse a VEJA o sociólogo Gerardo Adrogué, da Universidade de San Andrés, em Buenos Aires.
Daniel Luna/AP |
A ESTRELA BRILHA O candidato Francisco de Narváez, da oposição: vitória em Buenos Aires |
Néstor Kirchner havia transformado a renovação do Congresso em uma consulta popular sobre o "estilo K" de governar. Ele próprio encabeçava a lista do Partido Justicialista (nome oficial do peronismo) na província de Buenos Aires. Um vexame. O ex-presidente teve menos votos que Francisco de Narváez, candidato por uma frouxa coalizão entre liberais e peronistas dissidentes. Relativamente novo no cenário nacional, Narváez é a estrela em ascensão na política argentina. Ele não esconde a ambição de ser o sucessor de Cristina na Casa Rosada – mas há uma dificuldade intransponível. Nasceu na Colômbia e, como cidadão naturalizado, não é elegível para presidente. Seu limite parece ser o Congresso e a condição de cacique de uma das tribos que se engalfinham pelo butim do estado argentino.
A grande questão é o que o algoz do casal K fará com seu capital político. Uma possibilidade é Narváez apoiar Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires e companheiro na aliança vencedora. Membro de uma das famílias mais ricas da Argentina, Macri nunca foi afilhado de nenhuma das facções peronistas, condição rara na política local. O prefeito é o segundo político mais popular da Argentina. Só perde para Julio Cobos, vice-presidente de Cristina. Cobos era um político inexpressivo até o ano passado, quando rompeu com a presidente. O estopim do desacordo foi o projeto de aumento dos impostos sobre as exportações agrícolas, que colocou Cristina em confronto direto com os produtores rurais, responsáveis por 60% das exportações. Com direito ao voto de Minerva no Congresso, o vice-presidente derrubou o projeto. Desde então, deixou de falar com a presidente, o que fez muito bem para seu prestígio. Segundo pesquisas, 51% dos argentinos têm uma imagem positiva do vice. É mais que o dobro da aprovação de Cristina.
Fotos Cézaro de Luca/EFE, Editora Perfil e Eduardo di Baia/AP |
OS PRESIDENCIÁVEIS Julio Cobos, vice de Cristina, Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires, e o peronista Carlos Reutemann: a vantagem de ser anti-Kirchner |
A derrota nas urnas é o mais recente capítulo da acelerada derrocada política dos Kirchner. A manipulação descarada do índice de inflação, a retórica autoritária e a economia posta de joelhos por sua administração populista jogaram a aprovação do casal ladeira abaixo. Nos últimos meses, o governo enfrentou panelaços nas principais cidades e bloqueios nas estradas rurais. O apoio ruiu até mesmo dentro do partido peronista. Depois do massacre nas urnas, Néstor renunciou à presidência do partido e engoliu a ascensão de uma facção rival, liderada por Carlos Reutemann, ex-piloto de Fórmula 1 e senador pela província de Santa Fé, uma das mais ricas da Argentina. Político com fama de honesto, Reutemann era o principal candidato peronista às eleições presidenciais de 2003. Como abandonou a disputa, foi substituído por Kirchner, que venceu com apenas 22% dos votos. O resultado da semana passada foi a vitória de uma oposição que ressurgiu menos devido a seus próprios méritos do que aos erros do casal K. As facções peronistas se acomodaram em grupos por conveniências momentâneas, e não por opiniões divergentes. A ausência de um debate de ideias e propostas permeou toda a campanha. "A eleição foi uma votação contra os Kirchner", disse a VEJA o analista político argentino Julio Burdman, da Universidade de Belgrano, em Buenos Aires. "Só não ficou claro a favor de que os argentinos estão."
Com reportagem de Renata Moraes