O ESTADO DE S. PAULO
As novas regras para o uso de passagens aéreas no Congresso dão uma ideia um pouco mais precisa sobre o que quis dizer o primeiro-secretário do Senado, Heráclito Fortes, na quarta-feira ao explicar que as medidas de correção demoravam, mas seriam tomadas de "maneira segura".
Desde anteontem deputados e senadores que financiaram viagens de parentes, amigos, correligionários, funcionários e agregados podem estar seguros e dormir o sono dos justos porque não devem satisfação alguma sobre os gastos de um passado enterrado por decreto do Legislativo.
É a aplicação da mesma lógica adotada na decisão de divulgar as notas fiscais das despesas com a chamada verba indenizatória a partir de abril, deixando o passivo acumulado nos oito anos de existência da verba sob a anistia do sigilo.
De oficialização em oficialização das transgressões, o Parlamento vai firmando consigo uma espécie de pacto antirrepublicano pelo qual o vale-tudo passa a ter validade legal.
Quem farreou "para trás" farreou. Quem não farreou que farreasse porque o dano de imagem será igual para todos. O surpreendente é que os corretos não se insurjam. A menos que já não exista quem possa atirar um pedregulho.
Em relação às passagens, a segurança a que aludia o primeiro-secretário do Senado é mais ampla, pois regulariza a irregularidade para o futuro.
Agora é norma: mulher, marido, filhos, dependentes e funcionários podem com toda a segurança legal (não moral) viajar para qualquer lugar do Brasil ou do mundo à custa do contribuinte. Como se delegação tivessem recebido nas urnas para exercer os mandatos.
O que era para ser uma forma de o parlamentar se deslocar entre seu Estado de origem e a capital do País transformou-se em complementação salarial.
Se o congressista recebe a cota e a utiliza como quer, podendo inclusive transformar cinco passagens de tarifa "cheia" em mais de 20 bilhetes promocionais, isso significa ganho. De dinheiro, por mês, todo mês religiosamente, salário, portanto.
Sem desconto de imposto, tal e qual a verba extra.
A questão de fundo que o Congresso insiste em ignorar é o descontrole, ou melhor, a ojeriza a qualquer tipo de controle.
A evidência disso está na suspeita, ora sob investigação do Ministério Público, de que há um esquema de contrabando dessas passagens, vendidas no mercado paralelo com deságio.
Esse tipo de degenerescência, perfeitamente verossímil, é quase uma obviedade num ambiente onde os responsáveis pelo zelo daquilo que recebem nas urnas se revoltam quando chamados aos costumes, pois se consideram seres merecedores de reverências. São, na ótica interna, "nobres", levam a sério o tratamento de "excelência", não percebem a ironia contida nesse anacronismo de província.
Os atuais presidentes das duas Casas se fazem de desentendidos. O senador José Sarney escreve artigos inteiros sem tocar nem de leve no assunto que lhe concerne e, quando o faz, como na edição de ontem da Folha de S. Paulo, tergiversa. Tenta brincar de artista das entrelinhas, misturando Afeganistão com Lei de Gérson, Stanislaw Ponte Preta com Tribunal de Contas, muriçocas com Cleópatra, para concluir: "E o que tem isso a ver com corrupção? Absolutamente nada."
Se a ideia era desmoralizar cobranças, usar da escrita para fazer rir e ainda levar os mais desavisados a concluir que nada guarda relação com coisa alguma - inclusive sua condição de presidente com a esbórnia reinante no Senado -, só conseguiu confirmar que foge do assunto à espera do fim do vendaval.
O presidente da Câmara, Michel Temer, justifica-se alegando que não pode resolver os problemas da Casa com "um soco na mesa".
Não. Mas pode começar a enfrentá-los deixando de lado a concepção - exposta já na primeira entrevista depois de eleito, em fevereiro - de que os desvios de procedimentos são questões "menores". Pode também olhar as coisas como elas são no lugar de se associar à teoria da conspiração contra um dos pilares da democracia.
Pode usar seu poder para ordenar os procedimentos internos de forma a evitar que uma decisão tomada num dia seja refeita no outro, que uma mesma medida seja interpretada de maneiras diferentes por integrantes da Mesa.
Não só pode como deveria se render à evidência de que a hora não é mais de maquiar, é preciso resolver as coisas da forma como precisam ser resolvidas, sem embromação nem tentativas de compor a necessidade de dar alguma satisfação ao público de fora com o atendimento dos interesses internos.
Os de fora pedem ao Congresso respeito pelo voto obrigatório e que retribua com o cumprimento estrito de suas obrigações, entre as quais a preservação do decoro.
Os de dentro querem tempo, convictos de que dá para esticar a corda, esperar a poeira baixar e deixar tudo como está.
A solução para o dilema é inescapável. Se não vier agora, terá de vir mais tarde, pois a sinuca apresentar-se-á a qualquer um que se disponha a comandar o Poder Legislativo.
As novas regras para o uso de passagens aéreas no Congresso dão uma ideia um pouco mais precisa sobre o que quis dizer o primeiro-secretário do Senado, Heráclito Fortes, na quarta-feira ao explicar que as medidas de correção demoravam, mas seriam tomadas de "maneira segura".
Desde anteontem deputados e senadores que financiaram viagens de parentes, amigos, correligionários, funcionários e agregados podem estar seguros e dormir o sono dos justos porque não devem satisfação alguma sobre os gastos de um passado enterrado por decreto do Legislativo.
É a aplicação da mesma lógica adotada na decisão de divulgar as notas fiscais das despesas com a chamada verba indenizatória a partir de abril, deixando o passivo acumulado nos oito anos de existência da verba sob a anistia do sigilo.
De oficialização em oficialização das transgressões, o Parlamento vai firmando consigo uma espécie de pacto antirrepublicano pelo qual o vale-tudo passa a ter validade legal.
Quem farreou "para trás" farreou. Quem não farreou que farreasse porque o dano de imagem será igual para todos. O surpreendente é que os corretos não se insurjam. A menos que já não exista quem possa atirar um pedregulho.
Em relação às passagens, a segurança a que aludia o primeiro-secretário do Senado é mais ampla, pois regulariza a irregularidade para o futuro.
Agora é norma: mulher, marido, filhos, dependentes e funcionários podem com toda a segurança legal (não moral) viajar para qualquer lugar do Brasil ou do mundo à custa do contribuinte. Como se delegação tivessem recebido nas urnas para exercer os mandatos.
O que era para ser uma forma de o parlamentar se deslocar entre seu Estado de origem e a capital do País transformou-se em complementação salarial.
Se o congressista recebe a cota e a utiliza como quer, podendo inclusive transformar cinco passagens de tarifa "cheia" em mais de 20 bilhetes promocionais, isso significa ganho. De dinheiro, por mês, todo mês religiosamente, salário, portanto.
Sem desconto de imposto, tal e qual a verba extra.
A questão de fundo que o Congresso insiste em ignorar é o descontrole, ou melhor, a ojeriza a qualquer tipo de controle.
A evidência disso está na suspeita, ora sob investigação do Ministério Público, de que há um esquema de contrabando dessas passagens, vendidas no mercado paralelo com deságio.
Esse tipo de degenerescência, perfeitamente verossímil, é quase uma obviedade num ambiente onde os responsáveis pelo zelo daquilo que recebem nas urnas se revoltam quando chamados aos costumes, pois se consideram seres merecedores de reverências. São, na ótica interna, "nobres", levam a sério o tratamento de "excelência", não percebem a ironia contida nesse anacronismo de província.
Os atuais presidentes das duas Casas se fazem de desentendidos. O senador José Sarney escreve artigos inteiros sem tocar nem de leve no assunto que lhe concerne e, quando o faz, como na edição de ontem da Folha de S. Paulo, tergiversa. Tenta brincar de artista das entrelinhas, misturando Afeganistão com Lei de Gérson, Stanislaw Ponte Preta com Tribunal de Contas, muriçocas com Cleópatra, para concluir: "E o que tem isso a ver com corrupção? Absolutamente nada."
Se a ideia era desmoralizar cobranças, usar da escrita para fazer rir e ainda levar os mais desavisados a concluir que nada guarda relação com coisa alguma - inclusive sua condição de presidente com a esbórnia reinante no Senado -, só conseguiu confirmar que foge do assunto à espera do fim do vendaval.
O presidente da Câmara, Michel Temer, justifica-se alegando que não pode resolver os problemas da Casa com "um soco na mesa".
Não. Mas pode começar a enfrentá-los deixando de lado a concepção - exposta já na primeira entrevista depois de eleito, em fevereiro - de que os desvios de procedimentos são questões "menores". Pode também olhar as coisas como elas são no lugar de se associar à teoria da conspiração contra um dos pilares da democracia.
Pode usar seu poder para ordenar os procedimentos internos de forma a evitar que uma decisão tomada num dia seja refeita no outro, que uma mesma medida seja interpretada de maneiras diferentes por integrantes da Mesa.
Não só pode como deveria se render à evidência de que a hora não é mais de maquiar, é preciso resolver as coisas da forma como precisam ser resolvidas, sem embromação nem tentativas de compor a necessidade de dar alguma satisfação ao público de fora com o atendimento dos interesses internos.
Os de fora pedem ao Congresso respeito pelo voto obrigatório e que retribua com o cumprimento estrito de suas obrigações, entre as quais a preservação do decoro.
Os de dentro querem tempo, convictos de que dá para esticar a corda, esperar a poeira baixar e deixar tudo como está.
A solução para o dilema é inescapável. Se não vier agora, terá de vir mais tarde, pois a sinuca apresentar-se-á a qualquer um que se disponha a comandar o Poder Legislativo.