Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 14, 2009

Livro Neoliberal, Não. Liberal, de C.A. Sardenberg

Não será desta vez

Virou moda dizer que a crise financeira representa
a queda do Muro de Berlim do capitalismo. Livro mostra
que essa ideia não passa de uma tremenda bobagem


Giuliano Guandalini

Nguyen Huy Kham/Reuters

FÁBRICA DE RIQUEZA
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Trecho do livro

O aprofundamento da crise financeira internacional açulou, em todo o mundo – e no Brasil, particularmente –, a arenga manjada contra o capitalismo. Diante do estrago causado pela turma de Wall Street, os liberais ficaram contra as cordas. Poucos têm coragem de defender com a mesma ênfase de antes as virtudes intrínsecas do liberalismo. Em meio ao desemprego crescente, a tombos recordes dos PIBs e ao desastre das bolsas, multiplicam-se as críticas baseadas em premissas tortas do tipo: "Se o mercado está sempre certo, por que se meteu nessa encrenca e clama pelo socorro do governo?". Um dos poucos a enfrentar o simplismo e a miopia do momento é o jornalista Carlos Alberto Sardenberg, comentarista econômico da Rede Globo e apresentador da rádio CBN. Sardenberg acaba de destruir o tresvario do novo apelo socialista em Neoliberal, Não. Liberal (Editora Globo; 168 páginas; 28 reais). O ponto central do livro: "Alguns chegaram a dizer que a falência do banco Lehman Brothers estava para o capitalismo assim como a queda do Muro de Berlim esteve para o socialismo. Bobagem... Quanto mais capitalismo, melhor; quanto mais mercado livre, melhor".

O livro é baseado, em parte, em artigos já publicados nos últimos anos nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, nos quais o jornalista também colabora. A tese de Sardenberg é a de que as crises do capitalismo vêm e passam. É assim que tem ocorrido há mais de um século, pelo menos. O regime de mercado sempre se renova, e, cedo ou tarde, recupera sua capacidade de produzir e distribuir riqueza. "As mais espetaculares fases de crescimento mundial se deram sob a égide das práticas mais liberais", escreve o autor. "O momento mais brilhante da economia mundial moderna ocorreu no início deste século XXI, no auge da globalização."

Segundo o jornalista, o aumento recente da presença do estado na economia deve ser entendido como algo emergencial, e não como a prova de que o estado é moralmente superior a empresas e pessoas, como sustenta o esquerdismo ouriçado. Busca-se hoje a ajuda do estado simplesmente porque ele detém o monopólio de cobrar impostos e imprimir moeda. Só isso. Esse tipo de intervenção governamental, aliás, já ocorreu no passado e cabe perfeitamente dentro do figurino de um estado democrático capitalista. De tempos em tempos, como diz Sardenberg, o pêndulo oscila entre a proeminência de um capitalismo temperado pelo socialismo, com forte interferência estatal, e a hegemonia de um liberalismo mais radical. É essa maleabilidade que já deu ao capitalismo mais de sete vidas.

Marina Malheiros/AE


FALTA CAPITALISMO

"Ficamos assim: o que gera riqueza é o capitalismo e ponto final. Mas ainda persiste, por toda parte, o entendimento de que é preciso intervenção do estado para corrigir as injustiças do capitalismo — e isso é a esquerda de hoje. O problema é que essa boa intenção coincide com a velha fisiologia, a prática de setores privados de ocupar o estado para obter privilégios. O resultado é que as intervenções e regulamentações do estado tendem a gerar ineficiência e injustiça. Pensaram no Brasil? Acertaram. Não sobra neoliberalismo. Falta capitalismo."

Trecho de Neoliberal, Não. Liberal, de Carlos Alberto Sardenberg


LIVROS

Trecho de Neoliberal, não. Liberal,
de Carlos Alberto Sardenberg

Capítulo 1

Casos brasileiros: o marreteiro, o gringo e Antonio Ermírio Mas esse gringo é brasileiro

A notícia foi muito bem recebida por aqui: no início de 2008, o empresário David Neeleman, que já fundou três companhias aéreas nos EUA, uma das quais a revolucionária JetBlue, anunciou a criação da quarta, no Brasil. Além do dinheiro próprio que traz dos EUA, Neeleman recolheu mais investimentos externos, de George Soros e de um fundo de São Francisco, o Weston Presidio, aos quais se juntarão, minoritariamente, acionistas brasileiros.

Portanto, o que temos? São capitalistas estrangeiros desembarcando no Brasil para competir no mercado local, que é um duopólio, controlado pela Tam e Gol/Varig. Logo, é de fato boa notícia, sobretudo porque a nova companhia vai voar com jatos da Embraer, desprezados pelas empresas brasileiras.

Não poderia ser melhor exemplo dos efeitos positivos dos investimentos estrangeiros. O negócio de Neeleman traz capital, tecnologia, expertise, encomendas para empresas locais, gera empregos e cria uma competição que vai beneficiar todos os passageiros.

Mas, esperem um pouco. Isso pode?

Lembrem-se, a lei brasileira, para proteger o mercado da invasão predatória dos imperialistas, determina que só brasileiros podem ser donos de companhias aéreas e que os estrangeiros podem ter no máximo 30% do capital.

Na empresa de Neeleman será o contrário, os brasileiros terão menos de 30%.

Ilegal, não fosse um detalhe.

Lá atrás, os pais de David Neeleman passaram um tempo no Brasil e aconteceu de o menino nascer no Rio de Janeiro. E quem nasce no Brasil é brasileiro.

Mas David é também norte-americano. Na verdade, é essencialmente norte-americano. Fez sua vida nos EUA, abriu seus negócios lá, ganhou dinheiro lá, nunca teve atividade empresarial no Brasil. Do prisma econômico, digamos assim, a questão não deixa dúvidas: trata-se de um empresário estrangeiro que traz dinheiro de fora para entrar num negócio reservado a brasileiros. Só é legal por acaso, o que evidencia o absurdo da situação e da lei.

Imaginemos que os pais de David tivessem decidido ter o fi - lho nos EUA, lá perto de sua família, e que a história posterior seguisse exatamente a mesma. Teriam voltado ao Brasil com o bebê, que cresceria pelo Rio de Janeiro nos primeiros anos e depois seguiria para tocar a vida e os negócios nos EUA. Teria feito tudo exatamente igual, três companhias aéreas, a JetBlue, e teria até mesmo mantido interesse e afeição pelo Brasil. E aí resolveria fundar sua companhia aérea brasileira.

Não pode, diriam nossas autoridades, o senhor é um gringo e não pode vir aqui tomar mercado de nossos compatriotas.

O país fi caria sem todos os benefícios óbvios que a nova companhia vai trazer. E quantos outros bons negócios estará perdendo por conta desses acasos e da lei?

O marreteiro

Tomo um táxi em São Paulo, carro novinho em folha, com GPS, motorista educado.

Congestionamento vai, conversa vem, ele me conta que estava havia pouco tempo com o táxi, ia bem, mas bom mesmo era o negócio que ele tinha antes e com o qual "dona Marta acabou".

- Qual?

- Eu era marreteiro, vendia vale-transporte.

Resumo: ele comprava vale-transporte, no tíquete de papel, a R$ 1,70 e vendia a R$ 2, para uma passagem de ônibus que custava R$ 2,30.

O mercado se formou porque a lei determina a concessão do benefício a todos os empregados com carteira assinada. Muitos não o utilizavam, nem tinham para quem dar, de modo que havia uma oferta. A demanda era óbvia, todo mundo que pegava ônibus e, especialmente, que não tinha carteira assinada.

O negociante precisava de boas conexões para alcançar quem tinha os vales de sobra e um bom local para vendê-los. No caso do nosso taxista, uma boa banca em um local de enorme movimento de passageiros, a estação Itaquera do metrô, na zona Leste da capital paulista.

Pergunto:

- Mas como você se instala? Vai ali e arma a banca?

- Não, que é isso?! Você precisa comprar o ponto.

- Mas de quem você compra?

- De quem estava lá. O dono precisa te apresentar para os demais marreteiros do local e avisar que dali em diante você fica com a banca. Não tem papel, não tem nada, mas todo mundo respeita.

Nosso taxista pagou 5 mil reais pelo seu ponto, em dinheiro. Obteve bom retorno.

- Teve mês que vendi 60 mil passes.

Calculo e me espanto: a trinta centavos por passe, isso dá 18 mil reais!

- Menos - ele explica -, porque em lote grande a gente dava desconto e tinha de dar boa comissão para os intermediários (pessoas que sabiam onde encontrar vendedores, mas não tinham capital nem ponto-de-venda). - Mas teve mês que levei pra casa mais de 12 mil reais. E eu tinha ampliado o negócio. Na verdade, ele havia diversificado: passara a vender suco de laranja.

- E dava dinheiro?

- Dava uns vinte reais por saco de laranja, isso limpo, depois de pagar a laranja, os funcionários, a energia, os copinhos, o gelo. Em dia bom, de calor, vendia de doze a quinze sacos.

- Funcionários?

- Claro, não dava para tocar sozinho os dois negócios.

- Bom - pergunto -, e o que dona Marta estragou?

- Quando ela lançou o bilhete único, eletrônico, que não tem como negociar. E só com a laranja não valia a pena. Mas o ponto valia. Nosso taxista passou adiante por R$ 5,5 mil. Com mais sua poupança, comprou o táxi à vista.

- Mas se descobrir um jeito de negociar o bilhete eletrônico, volto a ser marreteiro.

Fiquei imaginando: o bilhete único é um avanço, mas, gente, que capacidade empreendedora, que organização desse mercado! Deveria haver um jeito de aproveitar esse pessoal. Um ambiente de negócios mais favorável ao empreendedor privado, de modo que fosse mais simples e mais barato montar negócios formais, mesmo que fosse o comércio de vale-transporte, certamente ajudaria a atividade econômica e o emprego.

Fico imaginando: se fosse possível criar um título formal de propriedade das bancas, a pessoa poderia utilizar isso como colateral num financiamento, por exemplo, de casa própria. O marreteiro tem propriedade, tem renda, mas não pode utilizar isso para alavancar negócios ou consumo.

Além disso, como informal, não pode crescer além de uma barraca nova de laranja. E aquele empreendedor, como certamente muitos e muitos outros, tem capacidade de gerar riqueza e empregos.

Adam Smith vive aqui

O Jornal da Globo, da TV Globo, realizou uma reportagem em dezembro de 2007 que deveria ser gravada em CD e distribuída entre políticos, economistas, cientistas políticos e sociólogos, com o seguinte título: "Receita de crescimento com inclusão".

A reportagem trata de um caso crítico: acesso aos computadores e, mais especialmente, à internet de banda larga. Nas classes D e E, apenas 2% das famílias têm acesso à rede em casa, o que cria uma enorme desvantagem para seus estudantes e trabalhadores. Vai daí que "inclusão digital" é objeto de inúmeros programas de governo, de eficácia duvidosa.

Mas que tal garantir acesso à rede, na banda larga, por dois reais a hora, bem pertinho de casa? Isso certamente inclui muitas pessoas dos bairros mais pobres. É o que mostra a reportagem.

História exemplar: Eliane Portela, moradora na favela de Heliópolis, na zona Sul de São Paulo, comprou quatro computadores, instalou na sua casa (depois de desfazer a cozinha), assinou banda larga e, pronto, eis uma lan house. A demanda era evidente e se confirmou: os computadores não param, a sala está sempre lotada, há filas de dia e de noite.


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