Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 08, 2009

Augusto Nunes SETE DIAS

Dia do espanto– O milagreiro Renan Calheiros ressuscitou Fernando Collor e mandou Ideli para o limbo

No quarto dia do terceiro mês do ano da graça de 2009, antepenúltima quarta-feira do verão brasileiro, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a equipe médica que interrompeu a gravidez da menina de 9 anos estuprada pelo padrasto e, por ter autorizado o aborto, também a mãe da vítima. Foram poupados da danação eterna tanto a estuprada, submetida a abusos sexuais durante 36 meses, quanto o estuprador compulsivo. Por motivos ignorados, o padrasto esquivou-se da cólera de dom José, que diminuiu ligeiramente a população católica pernambucana.

Na mesma quarta-feira, o rebanho paulista incorporou uma ovelha de bom tamanho. Suando sob a batina no dia mais quente registrado em São Paulo nos últimos 50 anos, o padre Marcelo Rossi foi refrescado pela notícia de que a sucessora escolhida por Lula, convertida ao catolicismo durante uma audiência com o papa, apareceria na missa da quinta-feira para rezar pela primeira vez. No meio da cerimônia, Dilma leu um trecho do livro de Ester.

"Põe em meus lábios um discurso atraente", pediu ao Senhor. Não é muito, reconheceram milhões de brasileiros ainda atônitos, atarantados ou grogues com as demais anotações amontoadas no livro de ocorrências do dia. Foram tantos os espantos e assombros que as primeiras páginas do dia seguinte não tiveram espaço para todas.

Para desconsolo da candidata, o acesso de religiosidade ocorreu na primeira quarta-feira útil do calendário do País do Carnaval. Ela nem imaginou que, no inverossímil 4 de março, o país surpreendido pela passagem do Sanatório Geral seria confrontado com a própria cara, sem retoques. Lembra a do ditador sudanês Omar al-Bashir.

Único delinquente estrangeiro a conseguir alguns centímetros nas capas de quinta-feira, o serial killer condenado à prisão pelo Tribunal de Haia aparece no retrato com um quepe de general cucaracha, hasteado no carro aberto como quem treina para estátua. O sorriso está avisando ao tribunal na Holanda que o Sudão é muito longe.

Lá, informa a imagem, vale tudo para quem manda. E aqui manda quem não vale nada, comprovam notícias ao redor. O Sudão é aquilo, certo? O Brasil é isto, alerta a manchete dedicada pela promoção a desembargadora, por unanimidade dos eleitores amigos, da juíza Ângela Catão. Soterrada sob evidências que a associam a grossas bandalheiras, a doutora livrou-se de ser transferida da vara em Belo Horizonte para a cadeia mais próxima.

Com a ajuda dos bandidos do Rio que atiraram um casal sequestrado do alto de um penhasco, o Judiciário venceu um Legislativo mais combativo que nunca. Fernando Collor estrelou o milagre da ressurreição operado pelo recentemente exumado Renan Calheiros, que manteve no limbo Ideli Salvatti e tenta remeter ao purgatório Jarbas Vasconcelos, condenado por honestidade. O dono do castelo está solto na Câmara. O dono da mansão deixou a direção do Senado ovacionado pelos demais servidores da pátria. Se aparecer no Brasil, o crápula que manda no Sudão vai sentir-se em casa. E, claro, virar refugiado político.

 Erislandy exagera na pancadaria e nocauteia a fraude


"Voltamos porque quisemos", bateu no fígado dos fatos, já no começo da apresentação na TV Globo, o pugilista Erislandy Lara – devolvido a Cuba em companhia de Guillermo Rigondeaux depois de capturado por policiais cariocas. Os organizadores do espetáculo escalaram Erislandy para convencer a plateia de que dois fugitivos a caminho da Alemanha, onde o esperavam a liberdade e o começo da carreira profissional, preferiram regressar espontaneamente à ilha caribenha de onde escaparam meses depois. Abandonados por empresários cruéis, continuou o script recitado pelo lutador, ainda estariam vagando pelas praias fluminenses se não os tivessem socorrido a sempre carinhosa Polícia Federal e a mão solidária de Tarso Genro.

O ministro da Justiça ficou de tal forma comovido com o calvário da dupla saudosa do lar que, para abreviar o reencontro, pediu ao companheiro Hugo Chávez que lhe emprestasse um Boeing. Até então preocupados com os parentes que ficaram para trás, Erislandy e Rigondeax foram tranquilizados pela promessa de Fidel Castro: se voltassem, tudo estaria perdoado. Grogue com a pancadaria documentada pelas câmaras do Esporte espetacular, a verdade estava prestes a jogar a toalha quando Erislandy saiu do roteiro combinado para disparar o golpe de misericórdia. Horas antes da decolagem, improvisou, conversou por telefone com o presidente Lula. "Ele me tratou bem", começou a reprodução do diálogo que não existiu.

"O presidente ofereceu tudo o que podia fazer, perguntou se eu queria ficar no Brasil", continuou fantasiando o pugilista ansioso por encerrar o duelo e livrar-se das intermináveis torturas psicológicas. "Eu disse que queria voltar para Cuba", soltou o direto de direita que, ao explodir abaixo da linha da cintura dos farsantes, mandou para a lona uma versão tão verdadeira quanto uma cédula de três reais. Neutralizado pelo próprio Planalto, o golpe da conversa entre o lutador que não fala português e o presidente que não fala nenhum idioma nocauteou o resto do depoimento. "Caso encerrado", haviam berrado jornalistas federais no fim do primeiro assalto. Terminado o segundo, soube-se que os craques da deportação são também falsários bisonhos.


 Gêmeos separados ainda no berço

As semelhanças são bem mais numerosas e relevantes que as diferenças. Comandantes supremos de organizações fora-da-lei conhecidas pelas iniciais, os dois preferem apresentar-se publicamente como "um dos coordenadores", ou "um dos dirigentes". Convencidos de que o sistema jurídico em vigor é apenas um instrumento a serviço da elite opressora, afrontam juízes, promotores e delegados com ameaças explícitas ou deboches desmoralizantes. As siglas que lideram têm seus próprios tribunais e códigos, sem qualquer parentesco com os instituídos pelo estado de direito. A pena de morte, por exemplo, é aplicada aos inimigos com frequência e naturalidade. E nada lhes parece tão odioso quanto o direito de propriedade.

Tudo somado, João Pedro Stedile e Marcos Camacho, o Marcola, lembram gêmeos separados ao nascer. Meia hora de conversa bastaria para que combinassem os pontos fundamentais da aliança histórica. Dispensadas das invasões de prédios urbanos, as tropas de Stedile agiriam no campo. Com as rotas rurais do tráfico de drogas protegidas pelo MST, o exército de Marcola se dedicaria às frentes de guerra nas cidades. As cláusulas restantes seriam negociadas entre os advogados do PCC e os padrinhos do MST, em meio aos quais figuram ministros com suficiente poder para remover obstáculos físicos que dificultam conversas a dois. Já está claro que Stedile não será preso. Que tal providenciar, então, a libertação do companheiro Marcola?

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