O Estado de S.Paulo - 05/09/11
A Índia está fazendo algo que mais parece ficção científica, uma mistura de 1984 e Admirável Mundo Novo. E que vai provocar um grande debate sobre os limites da democracia representativa, da privacidade e do controle do Estado sobre o indivíduo. Imagine fotografar 1,2 bilhão de rostos, escanear 2,4 bilhões de íris e coletar 12 bilhões de impressões digitais, juntar tudo isso num banco de dados digital, e torná-lo acessível pela rede de telefonia celular. Deve demorar 10 anos, mas já começou a acontecer.
O projeto chama-se Aadhaar e em pouco mais de um ano emitiu 30 milhões de números de identificação únicos para indianos de 13 dias de vida até 103 anos de idade. Participa quem quer, mas os atrativos para ganhar os 12 dígitos são muitos: com ele e sua impressão digital, qualquer um, mesmo o mais miserável sem-teto, pode abrir uma conta bancária, receber benefícios governamentais e descolar um telefone celular. Em vez de meses de idas e vindas de papelada, a identificação digital demora 8 segundos.
A meta é driblar a burocracia, evitar o desvio de recursos do equivalente local ao Bolsa-Família e diminuir as desigualdades de um país que é estratificado em castas e onde há oficialmente 400 milhões de pobres. O sistema está sendo implementado por uma espécie de "start-up" estatal, comandada pelo mais icônico "self-made man" indiano, o bilionário Nandan Nilekani, fundador da Infosys. Ele se afastou do seu império de software e terceirização de serviços de informática para tocar o projeto.
Os benefícios são óbvios, assim como os riscos. No limite, seria possível ao governo monitorar todos os cidadãos cadastrados, um verdadeiro Big Brother. Reportagem do The New York Times conta que as resistências foram grandes, mas o Aadhaar deslanchou graças ao aval do primeiro-ministro Manmohan Singh e - mais importante - da família Gandhi, que comanda o poderoso Partido do Congresso. Pode ser que tenham avalizado apenas pelo apelo eleitoral de diminuir a kafkiana burocracia da Índia. Ou não.
Identificação. O Aadhaar resolve o problema da identificação à distância. Através das câmeras dos celulares seria possível, em tese, identificar qualquer pessoa para realizar todo tipo de atividade, até votar. Hoje isso é impensável. Daqui a dez anos (ou menos) não será. O processo será tão fácil e rápido que pode colocar em xeque o sistema de democracia representativa, em prol da democracia direta.
É tudo o que os políticos e partidos não querem. Imagine uma votação instantânea dos eleitores do Distrito Federal cassando o mandato da deputada Jaqueline Roriz (aquela que foi absolvida pelos seus pares apesar de ter sido flagrada em vídeo recebendo dinheiro vivo). Ou decidindo pelo voto direto sobre a criação ou extinção de tributos.
A democracia direta pode ser também um atalho para a ditadura da maioria. Sem limites, favorece perseguições e ameaça direitos fundamentais do cidadão, dependendo de para onde o vento da opinião pública estiver soprando.
Mas as rebeliões em países democráticos como Espanha, Grécia, Chile e Inglaterra demonstram que a democracia representativa não satisfaz a nova geração de eleitores, que se sente excluída do processo decisório. Somem-se as novas tecnologias, as redes sociais e projetos como o Asdhaar e o resultado é um debate que pode ser adiado, mas não evitado para sempre.
E no Brasil?
O Tribunal Superior Eleitoral coletou as digitais (nada de escanear íris) de pouco mais de um milhão de eleitores até agora. Eles votaram em 2010 usando o indicador para se identificarem. Essas pessoas terão prioridade para receber o RIC (Registro de Identidade Civil), um número de identificação que substituirá o R.G. e, em tese, unificará CIC, PIS/PASEP e todos os outros cadastros federais.
O "em tese", no caso, é para ser levado a sério. O decreto diz que "os demais cadastros públicos federais (...) poderão adotar". Ou seja, não é compulsório. E os documentos velhos continuam valendo... Ou seja, o roteiro é o mesmo do "imposto único", que virou mais um: a CPMF.
Torcida. Num país onde cartório equivale a uma capitania hereditária, e TSE e IBGE têm códigos diferentes para identificar os mesmos municípios, é difícil acreditar que até 2018 você terá apenas um número de identificação federal para decorar. Mas se até a Índia - com seis vezes mais habitantes que o Brasil - está conseguindo, não custa torcer.