O Estado de S.Paulo - 10/02/11
Uma das características sorrateiras da censura é a de negar não apenas as ideias diferentes ou discordantes, mas, sobretudo, a de negar-se a si mesma. Em todos os tempos e em todos os lugares, a censura jamais se apresenta como instrumento do arbítrio, da intolerância ou de outras perversões ocultas. Ao contrário, ela costuma ser imposta em nome da segurança nacional, da moral ou quiçá até da própria democracia. Como regra, a censura é um mal que não ousa pronunciar o seu nome, preferindo travestir-se em expressões ambíguas e de forte apelo populista.
A expressão "controle social da mídia", em sua vagueza semântica, pode bem prestar-se a esse papel. Tamanha a sua repercussão, chegou a ser incluída no 3.º Plano Nacional de Direitos Humanos, sem muita clareza quanto ao seu significado. Cumpre, portanto, refletir sobre as possíveis acepções da expressão para separar o joio do trigo.
Existem duas maneiras básicas de compreender o que é o controle social da mídia. A primeira delas é centrada na figura do Estado e enfatiza o seu papel de agente regulador, fiscalizador e sancionador. Tal visão desconfia profundamente da liberdade como valor democrático e aposta no dirigismo estatal do discurso público. Ao tempo em que critica supostas distorções provocadas por grandes veículos de comunicação, essa corrente descrê da capacidade de discernimento e julgamento dos indivíduos.
Daí que, para esta linha de pensamento, há de haver um controle coletivo sobre o conteúdo do que se lê, ouve ou assiste, como forma de assegurar que os emissores das mensagens não manipulem ou distorçam o que deve chegar aos destinatários. Embora se fale em controle social, esse modelo não prescinde, na verdade, de uma agência central da qual partam os julgamentos e decisões sobre o que, afinal, mereça ou não integrar o discurso público. Tal agência só pode ser o Estado.
Não hesito em nomear, sem meias palavras, aquilo em que se traduz, na prática, a proposta dessa primeira corrente: censura. Esse tipo de controle social acaba por arrogar para o Estado um papel de curador da qualidade do discurso público, como se fosse possível situar algum ente estatal num ponto arquimediano do qual pudesse avaliar o que merece e o que não merece ser dito.
As duas questões principais que se colocam ao controle social da mídia realizado por intermédio do Estado são as seguintes: 1) Quais os critérios a serem utilizados no controle de conteúdo dos meios de comunicação? 2) Quem controla os controladores?
Ora, não há critérios objetivos, numa sociedade democrática, para definir o que merece ou não merece ser dito. Aliás, este é o traço distintivo fundamental entre a democracia e os regimes totalitários: a relatividade dos conceitos de bom, justo e verdadeiro. A garantia da liberdade de expressão e do livre fluxo de informações, ideias e opiniões - independentemente do seu mérito intrínseco - serve, precisamente, para assegurar a cada um de nós o direito de julgar e escolher, sem a tutela do Estado.
A segunda pergunta (quem controla os controladores?) tem resposta simples e desconcertante: ninguém. Uma vez aberta a porta do controle do discurso público pelo Estado, não há mais quem o possa controlar. Tornamo-nos todos reféns das visões de mundo dos burocratas de plantão.
A segunda acepção da expressão controle social da mídia é a única compatível com o regime constitucional de 1988, que baniu a censura e assegurou, em toda a sua plenitude, as liberdades de expressão, de imprensa e de informação. Tal visão é centrada na capacidade de julgamento e escolha dos indivíduos, desde que expostos a um ambiente livre e plural, capaz de gerar um robusto mercado de informações, ideias e opiniões. Assim, o controle social da mídia é a resultante da liberdade de escolha dos leitores, ouvintes e telespectadores, que tenderão a prestigiar os veículos de maior credibilidade e que ofereçam melhor qualidade em sua programação.
Em outras palavras, o crivo da opinião pública é a principal forma de controle das eventuais distorções provocadas pela mídia. O esclarecimento dos fatos pela emissora concorrente, a perda de audiência em razão da falta de credibilidade e a busca do público por novas e diversificadas fontes de informação e entretenimento (como as redes sociais e os portais de notícias na internet, por exemplo) são manifestações legítimas do controle social sobre a atuação dos meios de comunicação.
Para as situações extremas há mecanismos judiciais à disposição dos cidadãos. Tais mecanismos podem também ser compreendidos como formas de controle social. Refiro-me, por exemplo, ao direito de resposta e ao direito de retificação de notícia, que constituem instrumentos de participação do indivíduo na construção do discurso público pela imprensa. Além de um conteúdo tipicamente defensivo da honra e da imagem das pessoas, o direito de resposta cumpre também uma missão informativa e democrática, na medida em que permite o esclarecimento do público sobre fatos e questões do interesse de toda a sociedade. De outra parte, a responsabilização civil e penal, quando cabíveis, são certamente salvaguardas de defesa das pessoas contra eventuais abusos ou desvios.
Portanto, o desafio da chamada accountability da mídia envolve, sobretudo, a promoção de um ambiente pluralista e competitivo entre fontes e veículos de comunicação, no qual empresas, jornalistas independentes e cidadãos em geral poderão livremente divulgar suas versões e opiniões, assim como suas produções artísticas e culturais, cabendo aos indivíduos, de forma igualmente livre, formular seus juízos e exercer suas escolhas. Essa a única forma legítima de controle social da mídia.
MASTER OF LAWS PELA YALE LAW SCHOOL, É PROFESSOR ADJUNTO DA FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO