Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 04, 2009

A cúpula do G-20 tenta salvar o mundo da recessão

Os primeiros tijolos

Os líderes das vinte maiores economias do mundo se reúnem
para lutar contra a recessão, mas o resultado é tímido para a
grandeza da crise – e parece ignorar que a globalização está
enfrentando a maior ameaça de retrocesso da era moderna


André Petry, de Nova York

Eric Feferberg/AFP
UM POUCO FORA DE ORDEM
Os líderes do G-20 se preparam para a foto oficial, em Londres: fizeram o que tinham de fazer, mas foram tímidos


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Quadro: A marcha da globalização

Exclusivo on-line
Perguntas e respostas:
O que é e para que foi
criado o G20

Como palco para a promoção pessoal, a cúpula do G-20 em Londres foi um espetáculo de arte. Barack Obama esbanjou seu poder estelar e não descuidou de espalhar o sucesso de sua intervenção numa disputa entre França e China sobre paraísos fiscais. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, que antes ameaçara deixar a cúpula, nem esperou o anúncio oficial do resultado. Correu para os repórteres franceses para reivindicar um crédito pessoal nos "avanços imensos" para superar os equívocos do capitalismo anglo-saxão. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva circulou com desembaraço entre os dezenove líderes – ainda que oito sejam inequivocamente brancos e três tenham olhos decididamente azuis – e levou para casa o elogio de que é "o político mais popular da Terra" (veja quadro). Por fim, o anfitrião, o primeiro-ministro Gordon Brown, ávido por colher em casa um sucesso que vitaminasse sua chance de manter o cargo na próxima eleição, não deixou por menos. Anunciou a aurora de uma "nova ordem mundial".

Como fórum de decisões econômicas, de onde se poderia erguer uma muralha contra a recessão mundial, a cúpula do G-20 colocou apenas os primeiros tijolos. Timidamente. Decidiu injetar 1,1 trilhão de dólares para reanimar a economia mundial e ajudar os encrencados, apertar a fiscalização sobre as zonas mais obscuras do mercado financeiro e baixar o torniquete nos paraísos fiscais. O resultado equilibra as pretensões dos EUA e da Inglaterra, que queriam generosos pacotes de estímulo fiscal mundo afora, e as de França e Alemanha, que defendiam a fiscalização rígida sobre o mercado. Há consenso sobre a correção das medidas, mas falta muito a fazer. A começar por um ataque frontal à raiz da crise: os ativos tóxicos que contaminam os bancos e derrubaram ícones de Wall Street. Como eliminá-los sem uma quebradeira bancária mundial? "Os ricos estão negando o problema e reagindo como se bastasse ajudar os emergentes", diz o professor Kenneth Rogoff, de Harvard, para quem ainda poderá surgir outro problema: o aumento do protecionismo (veja quadro).

Carl de Souza/AFP
CONTRA O QUÊ?
Manifestante e policial se chocam em Londres: o protesto era contra a crise da globalização ou contra a globalização em crise?

A crise é grave, e os primeiros tijolos assentados em Londres ainda não são a barreira final para segurar a maré montante dos danos. O crescimento global deverá cair neste ano pela primeira vez desde a II Guerra. O comércio entre os países, coração e pulmão do ciclo de prosperidade que o mundo vinha experimentando, deverá encolher quase 10%, coisa inédita nos últimos trinta anos. O problema todo tem origem na economia americana. Com sua magnitude e a voracidade dos seus consumidores, os EUA puxavam o crescimento mundial. Os países, emergentes e ricos, organizaram-se para atender à enorme demanda americana. Com isso, a globalização acentuou-se e deflagrou uma onda de prosperidade. Os índices econômicos ganharam fôlego e a vida de milhões de pessoas melhorou em quase todos os continentes, com exceção da África. A taxa de mortalidade caiu. A expectativa de vida aumentou. Sobretudo na China e na Índia, milhões de pobres foram promovidos à classe média. Mas a locomotiva americana travou.

Em Londres, Obama disse que ninguém deveria esperar que os EUA voltassem ao nível de consumo de antes. Sua declaração ficou abafada pela sonoridade dos trilhões, mas é transcendental. Significa que a cadeia mundial de produção e consumo sofrerá uma transformação excepcional, para o bem ou para o mal. Por isso, a crise é a mais grave ameaça de retrocesso da globalização da era moderna. Desde o início do século passado, quando a I Guerra estancou a globalização – e inaugurou um período de recessão e pobreza, nacionalismo e xenofobia, comunismo e fascismo –, o mundo não enfrentava ameaça desta envergadura. Tudo isso dá um ar intrigante às manifestações que tomaram as ruas de Londres. Afinal, os manifestantes protestavam contra a globalização, que entrou em crise? Ou protestavam contra a crise, que ameaça a globalização? Mas, apesar da bússola um pouco desorientada, eles buscam o que sempre buscaram todos os jovens não conformistas desde a queda do Muro de Berlim: uma utopia pós-capitalista.

Faz sentido? Sim, basta examinar o notável simbolismo de algumas passagens da cúpula do G-20 – elas mostram que o capitalismo está passando por mudanças profundas. É a hora, afinal, de discutir o futuro, ainda que haja diferenças abissais entre o que querem as ruas de Londres (a morte do capitalismo?) e o que querem os líderes do G-20 (um capitalismo mais servo do que senhor?). O simbolismo está, em primeiro lugar, no declínio do Consenso de Washington, conjunto de políticas que orientou as reformas econômicas nos últimos vinte anos. Já não se vê como condição prévia para o desenvolvimento a desregulamentação ampla e geral dos mercados. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já não condiciona seus empréstimos à adoção de políticas econômicas restritivas. "O velho Consenso de Washington acabou", disse Brown. Acabar, não acabou, mas não será mais seguido como as Tábuas da Lei e único caminho para a prosperidade. A cúpula também mostrou que, pelo menos por ora, entrou em declínio o incontrastável predomínio dos EUA e da Europa, em especial da Inglaterra, sobre instituições globais como o FMI e o Banco Mundial.

Bettmann /Corbis/Latinstock
A FILA DO FRACASSO
Uma cena da reunião de cúpula em Londres, em 1933, para lutar contra a depressão: só piorou

Na semana passada, o jornal The New York Times publicou uma reportagem em que dizia: "Foram-se os dias, da Pax Britannica à Pax Americana, quando Inglaterra e EUA faziam as leis que outros seguiam". Talvez, aqui também, não se tenha ido tão longe, mas a crise acelerou o compartilhamento multilateral de poder. O processo, lembre-se, foi posto em movimento justamente pelo sucesso da globalização e do Consenso de Washington, cujas cartilhas enriqueceram a China e a Índia e deram impulso modernizante às economias do Brasil e da Rússia. Com a riqueza veio o reconhecimento internacional, e com ele a autoconfiança que essas nações demonstram hoje nos fóruns internacionais.

Como a própria natureza no seu processo evolutivo, a direção da mudança não é clara nem pacífica, mas há sinais animadores. Em 1933, os líderes das maiores economias também se reuniram em Londres para discutir a depressão. Foi um desastre. Sobreveio uma onda de protecionismo que só agravou a crise. Agora, os principais líderes parecem estar considerando as lições da história. Na cúpula anterior do G-20, ocorrida em Washington em novembro, bradou-se contra o protecionismo, mas, de lá para cá, dezessete países adotaram barreiras ao comércio. Entre eles, o Brasil. Na semana passada, aparentemente cientes do mal dos anos 30, voltou-se a condenar o protecionismo, agora com mais ênfase.

De salutar em Londres, tem-se que as lições da história parecem balizar as ações do presente. A queda do Muro de Berlim, em 1989, mostrou que o estado não é um bom empresário, mas a crise de agora também mostra que o estado precisa resgatar seu papel regulador, assegurando que o interesse público predomine sobre os interesses privados. O dinamismo da economia dos EUA, com sua máquina de produzir inovação tecnológica e prêmios Nobel, mostrou que a desregulamentação propicia um ambiente de liberdade que favorece a criatividade e estimula o crescimento. Mas a crise mostrou que sem a vigilância do estado a máquina pode produzir bolhas devoradoras de riqueza. As mudanças que o mundo atravessa apontam para uma reorganização do capitalismo financeiro em bases mais transparentes. Com certeza, porém, como notou com argúcia o pensador francês Gaston Bachelard, a humanidade continuará "sendo produto do desejo e não da necessidade". Isso significa que o ímpeto de consumo permanecerá igual; que a ganância e o egoísmo não serão extirpados da essência do homem por um cordeiro de Deus enviado para reorganizar a vida econômica nos moldes de frugalidade que os novos tempos parecem exigir.

Superada a crise, o capitalismo continuará criando inovação, riqueza e prosperidade. É uma lição da história. Karl Marx, o autor de O Capital e do Manifesto Comunista, de 1848, sugeriu que o capitalismo carregava em si mesmo o germe de sua própria destruição. Ao proletarizar as massas, o capitalismo, na teoria marxista, engordaria o exército inimigo, que acabaria por derrubá-lo. Deu-se o contrário. As massas estão mais prósperas, ainda que o cortejo de pobreza do mundo esteja longe de ser satisfatório. São elas que lamentam agora a inflexão da globalização capitalista, que, humilhada pela crise, perdeu ímpeto. Mas em um aspecto Marx acertou: a crise produz o novo. A crise capitalista anterior resultou no voto universal, na previdência social, no seguro-desemprego, na escola pública. A crise de agora, uma vez superada, também trará inovações. Na hipótese otimista, pode surgir dela uma forma menos desleal e bárbara de relacionamento entre o capital, as pessoas e a natureza. Na hipótese pessimista... Melhor nem pensar.

"EU ADORO ESSE CARA!"

"Em entrevista mais tarde, Lula disse que os elogios de
Obama só podiam ser interpretados como ‘gentileza’ ou
como uma ‘brincadeira’. Seja como for, o inegável carisma
de Lula funciona também onde ninguém fala português"

Fotos Zuma Press e Kevin Coombs/Reuters
COISAS DIFERENTES
Lula, ao lado da rainha e na hora em que Obama disse que ele era o "político mais popular da Terra": num caso, é elogio; no outro, é só protocolo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou a semana, talvez o mês, talvez tenha ganho mais que isso tudo: um bordão que poderá usar para reverberar pelo éter da política nacional. Ou talvez não. Vejamos. Um vídeo da BBC, a emissora estatal inglesa, registrou a cena durante a cúpula do G-20 em Londres, na quinta-feira passada. O presidente Barack Obama trocou um aperto de mãos com Lula, virou-se para o primeiro-ministro da Austrália, Kevin Rudd, e tascou: "Esse é o cara!", apontando para Lula. "Eu adoro esse cara!" O tradutor Sérgio Ferreira ia soprando no ouvido de Lula o que Obama dizia. Lula então cumprimentou o australiano, enquanto Obama acrescentou: "Esse é o político mais popular da Terra". E explicou: "É porque ele é boa-pinta".

A cena é rápida, des-contraí-da e não tem nada de muito surpreendente. Os homens do norte – agora se sabe: sejam brancos de olhos azuis, sejam morenos como Obama – sempre tiveram certo fascínio por Lula, cuja trajetória pessoal, sem dúvida, é estupenda. É natural que Obama, um político sorridente e descontraído, aborde de forma amável Lula, com quem esteve pela primeira vez há apenas três semanas. Mesmo entre políticos de ar mais austero, imperial até, coisas semelhantes já aconteceram. Fernando Collor, quando fez sua primeira viagem aos Estados Unidos, ganhou o apelido de "Indiana Jones" do então presidente George Bush, o pai, em uma referência às estripulias de Collor em aviões, jet skis e carros velozes.

Em entrevista mais tarde, Lula disse que as palavras de Obama só podiam ser interpretadas como uma "gentileza" ou uma "brincadeira". Ou seja: não eram um reconhecimento de sua importância histórica para o Brasil e para o mundo. "Tenho consciência do meu tamanho e não consigo entender de outra forma", completou Lula. Em seguida, para sublinhar o clima de camaradagem, disse que Obama era "o primeiro presidente dos Estados Unidos que tem a cara da gente" e que se encontrasse "com ele na Bahia diria que é baiano".

Em outros tempos, talvez Lula trombeteasse a brincadeira de Obama como se fosse um elogio histórico. Bom que não tenha reagido assim. A dimensão exata das coisas é saudável para a compreensão da realidade. Questionado sobre as referências que a imprensa estrangeira faz – e fez, na semana passada, até com certa abundância – sobre sua liderança internacional, Lula novamente foi certeiro. "Bobagem teórica", disse. "Ninguém me elegeu líder de nada. Falo em nome do Brasil." A correção de sua análise ajuda a retificar o despautério mais recente, quando disse que a crise fora causada por gente "branca de olhos azuis", transformando a crise, já por si mesma complicada de entender, num monstro incompreensível.

Bem, mas o presidente Lula é o presidente Lula. Na semana passada, o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, contou que, quando esteve no Brasil antes da cúpula, Lula lhe confessou certa inclinação histórica para sempre pôr a culpa nos outros. O presidente disse o seguinte, segundo o relato de Brown: "Quando eu era sindicalista, culpava o governo. Quando eu era da oposição, culpava o governo. Quando eu virei governo, culpei a Europa e os Estados Unidos". A frase foi relatada em uma entrevista. Com ela, Brown queria sublinhar que não era hora de culpar ninguém pela crise mundial. Provocou risos. Mas tinha um fundo de seriedade.

O inegável carisma de Lula funciona até onde ninguém fala português. Mas outro fato notável da presença do presidente brasileiro em Londres – a foto oficial em que aparece sentado ao lado da rainha Elizabeth II – nada tem a ver com carisma ou prestígio. Foi apenas protocolo. Lula estava ali porque, como já se encontra na parte final de seu segundo mandato, é hoje o integrante mais antigo entre os líderes do G-20.

O FANTASMA DO PROTECIONISMO

VEJA ouviu especialistas nos EUA, na Europa, na Ásia
e na África: eles temem que o desemprego crie barreiras
ao comércio mundial, o que seria devastador

"O protecionismo vai piorar. Com o desemprego aumentando, haverá imensas pressões políticas para restringir importações. O problema é que Obama parece não ter o mesmo apoio ideológico sólido ao livre-comércio que seus antecessores tiveram nos últimos quarenta anos."
Kenneth Rogoff, professor de economia da Universidade Harvard, em Cambridge
Adam Berry/Bloomberg News/Landov


Fotos divulgação
"Estamos apenas no início. Por enquanto, ninguém está recorrendo ao protecionismo em reação ao protecionismo de outros, à exceção do que acontece nos bancos e na indústria automobilística."
Richard Baldwin, professor de economia do Institut de Hautes Études Internationales et du Développement, em Genebra, Suíça


"Se não houver forte compromisso com o livre-comércio, o protecionismo vai aumentar na exata medida em que crescer o desemprego."
Bhanupong Nidhiprabha, professor de economia da Universidade Thammasat, em Bangcoc, Tailândia


"O protecionismo ainda está sob controle. Mas fala-se tanto disso que, quando a crise passar, muitos poderão pensar que houve uma espiral protecionista e, como nada aconteceu, poderão concluir que protecionismo não faz mal. E faz."
Patrick Messerlin, professor de economia do Institut d’Études Politiques, em Paris, França


"O protecionismo ainda vai piorar, mas não será tão espetaculoso quanto foi na Grande Depressão dos anos 30."
Peter Draper, economista do South African Institute of International Affairs, em Pretória, África do Sul


"Como não sabemos a duração da crise, os esforços para criar uma coordenação global são fundamentais."
Kevin O’Rourke, professor de economia do Trinity College, em Dublin, Irlanda

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